quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

As mulheres, o ano novo e as coisas

Sento na varanda do apartamento e olho para o infinito das coisas. O firmamento está azul, quase sem nuvens, como cabe ser em tempo assim, de calor abrasante no Recife. Lembro de ensaio científico que li em revista do século XIX, em cujo texto estão várias e diárias temperaturas no ambiente desta cidade dos rios e das pontes, no outrora dos anos. Os registros não ultrapassam os 28ºC no mês de dezembro mesmo. Agora – valha-me Deus do céu! –, o termômetro de meu carro acusa 32ºC à sombra o dia inteirinho. É o aquecimento global, dizem, que vem mudando o estado das coisas no planeta. Há geleiras derretendo e chuvas torrenciais desabando dos céus e como contrapartida, um calor de meter medo em qualquer um.
O tempo que se vive é o da finitude de mais um ano. Momento de parar e refletir. O que se fez? E o que se pode fazer no doravante dos dias? Eis a reflexão da hora! É! De minha parte, acredito que cumpri as metas do ano que se vai. Escrevi e publiquei, divulguei parte de minha produção literária e científica na Internet e assim, imagino, perpetuei o meu texto. Publiquei um livro e fiz um lançamento agradável. Recebi mais de 100 amigos e autografei igual número de volumes. Estou com outro volume no prelo e com toda certeza abro o ano com esse lançamento. Trato a propósito de “Aluizio Bezerra Coutinho – Um Sábio Pernambucano no Século XX”. Escrevi sobre esse professor que me ensinou nos anos 60 e me fez agora, nessa releitura de sua obra, fazer uma reflexão sobre esse exercício mágico da vida.
E o que não fiz? É! Não fiz muita coisa, posso deduzir. Deixei, tantas vezes, de ajudar àquele rapaz paralítico que pede esmolas em certa esquina do centro, nas proximidades de um banco. Uma preguiça enorme de tirar a carteira, quase sepultada no bolso de trás, exigindo-me levantar o quadril para a retirada do dinheiro, e a facilidade do “não”, têm me levado a negar, sem mais delongas, a contribuição. Não lembro, então, que estive ameaçado em minha condição de andar, de me locomover, acima e abaixo, sendo salvo por uma intervenção cirúrgica que me recompôs a coluna lombar. Mãos sacrossantas, digo sempre, salvaram-me o existir, com uma qualidade de vida, na qual há limitações, mas que me permite levar uma vida muito próxima do normal. Graças a Deus do céu!
Hei de fazer de 2010 o ano de todas as minhas redenções. Hei de buscar de volta a minha religiosidade, sem preconceitos e sem zangas. Quem sabe, acompanhar um pouco as homilias do novo Arcebispo e com ele enveredar por uma devoção diferente, sem pieguices e sem culpas. Sem necessidade de tanto pedido de perdão e de confissões intermináveis, como aquelas da adolescência, seguidas, quase sempre, dos carões e das expressões de espanto dos padres: “Outra vez! Não há solução para o seu caso!”. E eu era apenas um menino esbabacado ou embasbacado com as coisas do mundo ou com as coisas e as mulheres. Eu adorava as mulheres! Ainda as adoro!
E o que fazer com aqueles que me fizeram mal? Não tenho resposta para isso, ainda! À publicação da crônica, escreveu-me Luiz Lira, meu colega dos bancos de colégio - Colégio Nóbrega - com a seguinte recomendação: "Esqueça! Você é especial". Cresci em auto-estima e confesso, já esqueci!
(*) - Eis o derradeiro texto do ano. O de minhas reflexões em torno do tempo passado e a propósito do porvir das coisas. Ofereço a crônica, singela, mas sincera, a meu médico Geraldo Sá Carneiro, de cujas mãos recebi a benção do meu resgate. De igual forma, a Luiz Fernando Salazar de Oliveira e Paulo Almeida, colegas e amigos, médicos também. A meu ilustre primo Zé Luiz Delgado, cujas palavras, às vezes rígidas, me fazem refletir. Hoje mudo um de meus contadores de visitas, para que o ano de 2010 seja isoladamente contado. Comente o leitor neste espaço mesmo ou para os e-mails pereira@elogica.com.br ou pereira.gj@gmail.com

quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

O Convescote da Afonso Pena

Eu não sou muito desses movimentos! Mas, ele ligou e convidou, ligou e lembrou, insistiu e novamente convidou, lembrou mais uma vez. No almoço encontrei Bob e Valéria também chamou; chamou e insistiu. Em casa não disse que sim ou que não, apenas comuniquei: “Moisés chamou para uma confraternização da rua Afonso Pena e adjacências!”. Deixei a decisão de ir ou de não ir para o momento. Quando a manhã do domingo esquentou e fez os termômetros marcarem 32ºC, decidi: “Vou ao convescote de Moisés!”. Como casei com mulher que nunca enjeitou passeio ou festa, obtive a concordância de pronto: “Vamos!”. Encontrei por lá mais gente do que esperava e confesso que fui recebido quase como um nobre do Império. Gente de lá, da Afonso Pena e gente de cá, da Sossego e da General Semeão, da Bernardo Guimarães e dos Pires. Todos nesse esforço sessentão de resgate do ontem das coisas.
Quem presidia o espetáculo do tudo era Zé Moraes, figura que pontificava nos anos sessenta e que continua sendo o atleta de hoje, jogando tênis e fazendo musculação, saltando em distância e se jogando nas alturas que aparecem, pulando obstáculos. Mas, havia outros, muitos outros, velhos amigos dos anos de calças curtas e dos tempos que se foram. Um desses, Ademir de prenome, já frequentou este espaço virtual, era o homem do “por quê?”. Aquele que indagava sobre qualquer que fosse o ato e ou o fato, razão para ter levado um soco de um pintor, depois de tanta pergunta sem jeito. No meio da confraternização, pra lá e pra cá, conhecia de um por um e sabia das histórias todas, tintim por tintim. Isso é que é memória, repetia-se a cada mesa.
Os Valadares, quase do mesmo jeito, esbanjavam vida e saúde, saudavam os que chegavam e reclamavam de quem ameaçava sair, almoçar e voltar pra casa, em busca da sesta dos hábitos. Um deles recebeu “Carrapeta”, fez as medidas antropométricas, concluindo que crescimento não tivera nessas três décadas pra trás. Também pudera! Ângela Barreto passeava acima e abaixo, trazia exemplares de seu livro – Em Tempo de Espera -, volume que trata de amores e de desamores, de promessas e de máscaras, de louvações e despedidas. A uns e a outros autografava um exemplar e agradecia a leitura. Li de um fôlego só! No mesmo diapasão, a nossa Myriam Brindeiro distribuindo a Agenda do Poeta, na qual pontifica gente da melhor espécie entre nós. E Fred Moreira? E Adilza? E Adilson? Todos por lá, num vaivém danado, do ver e do rever.
A família Diniz em peso. Marcos, o primogênito, começando na Internet, viúvo e noivo, noivo e viúvo. Murilo, o mago da relojoaria, esbanjando humor, mostrando os irmãos: Marta e Mércia, Moisés e Mozar. Quando no relógio de Murilo os ponteiros se abraçaram e ele gritou, em alto e bom som, o meio-dia, entrou Dinizinho (José Diniz Filho), que vinha com os cabelos desgrenhados, esvoaçantes, qual poeta que de longa cabeleira puxa o verso e faz a rima. Falou de Angola e de sua devoção aos pais. Disse da fotografia de ambos – de seu José Diniz e de dona Lilia – sobre a mesa de trabalho e da prece que faz quando precisa de um alento: “Pai e Mãe: O que faço agora?”. É! É sempre assim, a falta que fazem os pais, genitores de todas as horas! Sabendo ou não sabendo das coisas, são invocados e evocados, uma luz é o que se pede, porque todos são sábios no entender dos filhos.
Tive vontade de falar com Sônia, colega minha – de Fred Moreira também – nos bancos escolares, mas lembrei de episódio com outra companheira desses anos e de meu entusiasmo: “Foi minha colega no grupo escolar!”. E a resposta rude: “Não gosto quando você diz isso!”. Mas, Sônia não falaria assim, justificou Moisés. Pois, meu caro Moisés, diga a ela. Lembre desse tempo que se foi pra trás e ouça as suas considerações. Talvez lembre, ainda, de Vera Mendes ou de Elizabeth, a inglesa. De Silvio Romero e de Luiz Fernando. E Bob, coronel por derradeiro, escritor e bombeiro, professor e romeiro nas brenhas do sertão. Entrou com aquele jeitão, piscando o olho pra toda gente e trazendo a tiracolo Valéria de todas as animações. Abriu a sirene à chegada e só desligou quando saiu o último dos penitentes.

Eis ai, amigo leitor, o convescote da Afonso Pena.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

O Natal dos Pássaros

Difícil buscar inspiração neste Natal, tempo de confraternização e tempo de paz: minha mãe está muito doente. Foi assim há 17 anos passados com o meu pai. Um fim de ano conturbado. Quando chegamos em casa dele, como fizemos vezes seguidas, não quis descer do quarto, não aguentaria mais a agitação daquela terminalidade, a do ano e a sua própria. Voltamos para casa e improvisamos uma festinha para as meninas, quase crianças ainda. Ouvimos o badalar das horas e brindamos ligeiramente a passagem do ano. Agora, não adianta mais insistir, não há como buscar no imaginário cenas que possam resgatar o bom das coisas ou o espírito não consegue sentir o enlevo do momento. Quem sabe possa repetir um passeio que fiz pelo rio Capibaribe e vendo o Recife à noite, reescrever a crônica de 2007. Talvez! Ou apenas olhar e ver a fotografia de meu Blog mesmo, publicada naquele ano, colhida durante um passeio de barco..
Hoje pela manhã, logo cedo, quando saia de meu exercício matinal num programa de hidroginástica que tenho como se fosse uma religião, vinha lembrando o quanto foram gostosos os meus finais de ano. Os passeios que dava pelas ruas iluminadas da cidade, levando as três filhas, cada qual que fizesse a sua observação, caracterizando a peculiaridade do instante. Fabiana, a mais velha, quando muito pequenina, ficava deslumbrada com o bueiro da fábrica da Tacaruna iluminado e dizia, em seu verbalizar iniciante: “A cacauna painho! A cacauna painho!”. Nunca esqueci isso! Agora, mãe como é, há de trazer o filho, meu neto, para ver também a terra em que nasceu e se criou. Pras bandas da Espanha, o frio está gelando os ares, por isso mesmo há um lugar certo para o Papai Noel. Por cá não, faz um calor acima dos 30º C e só cabe mesmo a tropicalidade da roupa e a afetividade do gesto.
O tempo passa, os filhos crescem e se vão, os pais envelhecem e morrem. Mas, é preciso conservar o espírito de fraternidade que preside a cena desse tempo mágico. Nota-se em todo canto, até nos elevadores, que os semblantes estão mais descontraídos, há mais facilidade na comunicação e o gesto se faz mais espontâneo também. Toda gente comunga dessa despedida do ano; cristãos e judeus, aqueles que professam a fé dos terreiros e os espíritas, cujo culto contempla as almas desgarradas da matéria e a reencarnação. Na ceia, a tradição de séculos e mais séculos é repetida, o peru ou o porco se apresenta à degustação da família. Mas, infelizmente, a minha mãe não precisa me mandar à venda da esquina, com a recomendação: “Vá comprar uma dose de aguardente! Mas, avise que é para matar o peru, se não vão pensar que seu pai bebe!”. E o meu pai, quando muito servia-se de uma sangria, maculando a pureza do bom vinho português.
Nesse tempo assim, de minhas oscilações do humor, os pássaros conseguem me alevantar a alma. Ontem, em uma de minhas caminhadas pelo Parque da Jaqueira, não resisti e sentei em banco de cimento duro e fiquei absorto, observando o saltitar de um sanhaçu num galho próximo. Que beleza! Que coisa linda, meu Deus do céu! Ao longe, um sabiá-laranja cantava os acordes de minha infância. Trinava bonito e repetia o canto, chamando, com toda certeza, a fêmea para o êxtase dos dias de agora. Se fosse em Aldeia, teria comprado um mamão passado, dizendo ao vendedor do mercado: “Amigo! Quero um mamão podre!”. E o vendedor, em sua perplexidade, nunca deixou de indagar: “Por que podre?”. Não é podre, é passado, sempre digo! Lá ainda chegam o João Moleque e a Maria Mulata. A lavadeira e a guriatã. Todos das atenções do meu ilustre amigo Roberto Harrop, mais sociólogo que antropólogo. Oh, amigo, as lavadeiras de meus anos lavavam do Cristo a roupa, por isso, a minha avó paterna não as deixava pegar.
E os canários? Aqueles de penugem amarela, tão doirada quanto a cor que reluz! Foram, também, de meus tempos de menino? Onde estão Harrop? Pousavam no terreiro de casa, a mesma casa de minha mãe no hoje dos dias, caiam, vez ou outra, no alçapão de rede e iam parar no viveiro de casa, no qual amansavam os abarrancados e mudavam as penas os jovens passarinhos. Eis o Natal dos Pássaros e o meu Natal.



(*) - Ofereço o texto a Roberto Harrop, amigo meu de Aldeia, vizinho ilustre daquelas plagas. Uma crônica quase toda sofrida, para um tempo de paz e de tranquiliade; crônica de meus humores oscilantes, às vezes animados e tantas vezes tristonhos, melancólicos. Afinal, a minha mãe não está bem Pela beleza dos pássaros, desses do Blog e daqueles dos meus caminhos em Aldeia, ofereço o texto a Roberto Harrop, na esperança de vê-lo fotografar um canário amarelo em determinada relva do bosque.

domingo, 13 de dezembro de 2009

Os Gemidos de Bruna

Manassés, que sabe dessa história e de outras mais, depois de ter lido a crônica passada – Os seios de Otília –, apareceu aqui por casa. Sentou-se no alpendre e pediu a lagosta que trouxera já cozida, por isso mesmo ao ponto, acompanhada de uma cerveja bem gelada. Abriu a boca no mundo e tome a falar do povo que conhecera, da mulherada, sobretudo. Indagado como ia passando a protagonista do relato que tanto agradou aos meus leitores (Otília), disse que estava perto dos 80 anos de idade, mas lépida e fagueira, satisfeita da vida e viúva outra vez, depois que “matou” dois penitentes neste mundo de Deus. O seu Cícero dos começos e pai de suas filhas e o senhor William, que assumira a mulher ainda com o corpo bem dividido e com a aparência conservada. Contou que, recentemente – já se vão uns três anos -, recebera da parte dela uma ligação telefônica, na qual dizia que estava vivendo com um rapaz, figura dos seus 35 anos. Como ficara só na vida, sem companhia que fosse, com as meninas casadas, encontrou esse companheiro, antes um motorista de taxi, agora desempregado, apenas. E a Manassés, que sabia muito prestativo, pedia fosse o quase marido operado em hospital público. O meu amigo não hesitou e de logo perguntou:
- A senhora casou, dona Otília?
- Não, meu querido, eu me juntei!
- E ele vem dando conta do recado?
- Claro e muitíssimo bem! Mas, o que preciso é conseguir a cirurgia da vesícula.
E o Manassés conseguiu!
A verdade é que o homem tem histórias que o diabo duvida de costas. Antes de se prender às peripécias da família de Otília, de suas incursões e das incursões filiais, lembrou de um episódio da Festa da Mocidade, com duas empregadas domésticas de minha rua: Coqueiro e Maria Branquinha. Coqueiro era negra, tinha o cabelo de tal forma encarapinhado, que o tufo piloso fazia a cabeça parecer o topo dessa árvore que no Nordeste é de tal forma abundante que faz a sua gente tomar a água de seu fruto como se potável fosse: o coco. E Maria Branquinha o leitor já imagina como era. É que os colegas de adolescência se juntaram, reuniram os trocados e pagaram um anúncio no posto de rádio. Dizia, mais ou menos assim: “Atenção! Atenção Geraldo Pereira! Coqueiro e Maria Branquinha, em nome do Sindicato das Domésticas, enviam beijos e abraços!”. Ora pau! Eu sentado, de namorada a tiracolo, passei momentos de intranquilidade visível. Mas, é assim mesmo!
Mas foi ele, ainda, Manassés, quem contou de Bruna uma passagem no mínimo curiosa. Estava ele vagando pela rua em que morava, batendo perna, se dizia, quando viu a menina correndo aos gritos para dentro de casa. Dirigiu-se pra lá e foi recebido por Otília estupefata: “Não sei o que houve! A menina estava bem! Conversava com Aparício e saiu correndo, gritando desse jeito!”. O meu dileto amigo, solidário como é, de nome hebraico, cujo sentido é esquecer – E ele não se esquece de nada –, foi acudir a moça in loco, indagando: “O que há Bruna?”. E resposta não obteve, senão os gritos: “Ai!, Ai!, Ai!, Ai! Ai! Ai!”. O que é, indagava ele? Nada, respondia a menina, mas não parava com tanto Ai! Cinco, seis ou sete Ai! De cada vez, em ritmo cadenciado.
O namorado, vendo a cena, sendo ele o protagonista daquele filme, escapuliu de fininho, como se nada tivesse acontecido. E os gemidos foram espaçando, espaçando, até que ela amoquecou, relaxou, deixou-se ficar ali mesmo, enfraquecida como estava. Daí por diante Manassés não sabe mais se as crises reapareceram, se continuaram sendo diante do namorado que virou noivo e depois casou ou se desapareceram. A verdade é que nunca mais a ouviu gemer.

Mas, daria tudo para ver e ouvir, outra vez, os gemidos de Bruna!
(*) - Ofereço o texto, metade verdadeiro e metade ficção ao meu dileto amigo, colega de turma e meu chapa: Ataide. Ás vezes conhecido pelo apelido de Ataúde e às vezes chamado pelo cognome de Hepatite. Três nomes em um só. Figura que encontrei, casualmente, numa loja, fazendo compras com a mulher. Grande contador de histórias ele, mas de outras histórias, das que foram vividas nos tempos da faculdade.

sábado, 5 de dezembro de 2009

Os Seios de Otília

A casa entrava em polvorosa, quase se pode dizer, quando seu Cícero chegava fedendo a cerveja e sujo com molho de carne guisada. Entrava gritando e sentava à mesa esbravejando. Muitas vezes se ouviu, nos arredores daquele sobrado, pornografias ditas pelo homem enfurecido. Mandava que se recolhessem todas, a mulher e as duas filhas. Ninguém tinha liberdade e só abriam aquele portão de ferro pesado para um destino considerado nobre e digno, isto é, a escola das meninas e a igreja da esposa. Fora disso, nada! Era um ciúme doentio. Disso não se duvidava e nas esquinas era comum o comentário: “Brites e Bruna não aparecem nas janelas!”. Mas, a rapaziada do bairro não dispensava uma graça ou um galanteio, quando se dirigiam ao colégio: “Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça/É ela menina que vem e que passa...”, diziam, imitando Tom Jobim e lembrando da Garota de Ipanema.
Eram moças, realmente, atraentes. Tinham os traços parecidíssimos e os corpos quase iguais. Mocinhas arabizadas, mouras, no melhor estilo das descrições de Gilberto Freyre. Baixinhas e de formas protundentes, de largas cadeiras e bustos pequenos, mas firmes e fortes. O diabo atenta gente assim, presa pelos grilhões do ciúme e vez ou outra a meninada tinha o que contar das moças que viviam trancadas. Vezes e vezes, o vizinho de frente, Chico por apelido, subia na mangueira de casa e diante do sobrado antigo via Brites em trajes menores, de calcinha e sutien no espelho do quarto. Era uma sensação tão forte, mas tão forte, que certa vez ele quase caiu da árvore. Desceu às carreiras, quando ouviu o grito da mãe: “Chico, menino danado! Vem comprar o sal da comida!”. Correu e comprou! Na volta subiu outra vez e lá continuava a garota, no quarto ainda, vestindo e tirando a roupa de suas intimidades. E a cena repetiu-se muitas vezes.
Sucede que Brites vira o olheiro de ocasião e tempo não perdera – o diabo atenta mesmo – tirou o sutien pespontado que usava e ficou com os dois pingentes expostos. Virou-se para o observador de ocasião e andou dois ou três passos, pra lá e pra cá, balançando os berloques em movimentos pendulares, como cabe fazer uma mulher assim, vistosa e bem parecida. Chico tremia feito vara verde no galho da mangueira, perplexo com a beleza da mulher. Mas, como todo homem que se preza, queria ver mais e mais, queria tocar e alisar, apalpar enfim aquele corpo tão bonito e tão tentador. Não podia, porque seu Cícero, o português encapelado, bêbado e teimoso, parecia um cão feroz diante de qualquer tentativa de aproximação. Nem conversa queria, fosse mulher ou fosse homem. Temia namoros e afetos, afagos jamais e o libidinoso da idade que fosse para as cucuias de costas.
Bruna de nada sabia e como fora sempre a mais contida, ficava no ora veja e dela ninguém via nada. Foi ela, no entanto, quem arranjou um namorado primeiro. Chegou Aparício em sua vida e a paixão tomara conta dos dois. Era um alvoroço na hora de seu Cícero chegar, um corre-corre danado. Esconde pra lá e escapole pra cá, o rapaz correndo feito um louco de volta pra casa e ela saltando o muro baixinho, correndo pra sala. Um horror! Naqueles anos da década de sessenta o namoro era contido, levava meses seguidos para se pegar na mão, outros meses mais para enlaçar a namorada e anos para se beijar na boca. Sucede que nessas circunstâncias, de namoro muito escondido e de um pai assim, levado da breca, como seu Cícero, o diabo também atenta e as coisas andavam mais rápido. Aparício, então, já estava em estágio bem adiantado do processo, a sua mão entrava pelo vestido e abordava a velha combinação dos costumes da época, suspendia o porta-seios e bolinava com todo cuidado a moça Bruna, recatada e pudica. Ela tinha os mamilos mais lindos que o menino já vira, eram medalhas militares intocadas.
Um dia qualquer, estava o casalzinho em abraços e apertos no muro de casa, ele com a perna direita posta no muro, onde se encostara e ela caída sobre o seu corpo. Quando o algoz apareceu na frente foi um rebuliço, mas de uma hora para outra a família toda se revoltara e resolvera enfrentar a fera. Pegaram o homem pela breca, deitaram no passeio de acesso ao alpendre e deram-lhe uma surra de que não se tem notícias em todo o Recife do antes. O penitente, não teve dúvidas, pegou um saco velho, com o qual imitava o papai-noel nas festas de fim de ano, encheu com os seus pertences e ameaçou: “Vou embora dessa merda! Aqui só tem doido!”. O namorado que avançara o sinal foi saindo de fininho e desapareceu na primeira esquina. Nunca mais voltou! A constelação parental, porém, diante da retirada do carrasco que comandava os destinos da família, bateu palmas em conjunto e o homem, também, nunca mais voltou.
O que ninguém sabia era que Otília, a mulher contida e submissa, acostumada aos gritos do marido e ao esbravejar daquela fera tantas vezes enfurecida, também trocava de roupa com a janela aberta e Chico vira inúmeras vezes os seios da mulher. Ela tinha um prazer desusado em mostrar o seu busto ainda rijo àquele menino quase imberbe, que lhe via do galho mais próximo da mangueira. E ele, na safra da manga-rosa, nunca descuidou do presente generoso. Não dizia, porque também não podia, mas aquelas frutas rosadas eram os seios de Otília. E ela, também, sem expressar seus desejos agradecia de bom grado e dizia: “Um dia vou lhe recompensar!”. Se recompensou, o leitor há de saber depois, noutra semana, se dessa crônica se agradou.
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