sábado, 26 de abril de 2008

Histórias Pitorescas de um Reitor

No Brasil dizia-se que vice nada representa. Depois, um desses suplentes assumiu o lugar do titular e a idéia caiu por terra. Ora, vice, na verdade, não é lá essas coisas todas não, mas é pau pra toda obra e disso ninguém duvide. Eu fui vice e dou conta do que houve e do que fiz. Já se vão cinco anos, se pouco, ocupei o lugar de Vice-Reitor da Universidade Federal de Pernambuco; lugar no qual adquiri rara experiência a propósito da convivência humana, servindo de mediador, tantas vezes, para os chamados conflitos institucionais, presentes em todos os quadrantes da administração pública e privada, quiçá nas hoje constituídas parcerias público-privadas. Onde estiverem mais de três pessoas reunidas, tenha certeza o leitor, há de se ter algum desentendimento e alguma desavença. Mas, não é sobre isso que devo escrever, antes prefiro falar do pitoresco, do engraçado, do diferente, talvez do exótico em tempos assim.
Certa vez, então, o Reitor – Mozart Neves Ramos – me chamou a seu gabinete e me pediu para representá-lo na solenidade de inauguração de uma agência do Banco do Brasil, que se instalava no Hospital das Cínicas. Indaguei quando seria a solenidade e perplexo ouvi a reposta: “Dentro de uma hora!”. Com uma fisionomia de quem comeu e não gostou voltei para a sala e fui buscar na Internet informações a respeito. Tinha muito pouco tempo e com isso bloqueei o trânsito de pessoas e de telefonemas. Afinal, precisava estudar, pois, com toda certeza, teria que falar. Li o que o tempo me permitia, abrindo a página do Banco e me instruindo a propósito. Descobri até que ignorava certas peculiaridades da grande instituição bancária. Pois é, parti para a luta, isto é, para a inauguração.
Como já esperava, a palavra me foi concedida, com toda a pompa e circunstância. Não hesitei e com a retórica que aprendi nos bancos do colégio abri a boca, com o indicador direito apontando para o chão: “Este Banco, que ajudou a pagar a dívida da Guerra do Paraguai, foi fundado por Dom João VI e se faliu, em função das injunções impostas pela coroa, pôde reerguer-se, graças à garra dos seus funcionários e dos seus diretores.” E por ai foi! Quando terminei, os presentes quase se acabam de tanto bater palmas. Tinha puxado um assunto que poucos ali conheciam – de minha parte a ignorância era total –, o que fez o gerente geral me procurar em seguida e me dizer o seguinte: “Professor! O senhor conhece a história do Banco mais do que todos nós! Gostaria que fizesse uma palestra para os gerentes de Pernambuco!” E eu, com muito cuidado: “Meu caro! Tudo o que eu sabia já disse. Não sei mais de nada!” E por ai ficou! Graças a Deus!
E se dessa lembrei, não custa rebuscar a memória e trazer de volta outra história similar. Estávamos todos – a equipe da Reitoria –, numa visita ao Departamento de Genética, ouvindo, como sempre acontece no serviço público, as lamúrias das carências e das faltas. O meu ilustre colega e amigo Luiz Maurício, um craque hoje no estudo sistemático do DNA humano, expunha as suas necessidades para dispor, como já dispõe agora, de equipamento que lhe permitisse montar o mapa genético dos que duvidam da paternidade. Fosse uma inspeção feita pelo bispo, dir-se-ia que era uma Visita Pastoral. Ou ainda, fosse uma visita ao Papa, não há dúvidas: uma Visita Ad-Limina. De repente, Mozart – sempre Mozart! – segreda aos meus ouvidos: “Está na hora de um encontro no Centro de Tecnologia: a Semana da Árvore! Eu não posso sair daqui, peço que vá presidir!”. E, como vice é vice, pedi licença e fui.
No caminho, ia matutando o que dizer e o que falar. Pensei na ecologia, no meio ambiente, na beleza do verde, das árvores, enfim, e nos bichos também. Mas, naquele Centro ninguém sabia, exatamente, de se tratava, ninguém ouvira absolutamente nada de nada e eu cuidadoso, sempre, insistia em saber. Descobri depois, era um evento para tombar um baobá, essa árvore gigante que a todos encanta. Indaguei a razão e os motivos do ato e soube dos detalhes. Na hora do palavreado solene, não tive a menor dúvida: “Este baobá, mais que secular, que antecedeu o engenho e que foi plantado na propriedade adquirida para a Cidade Universitária, merece o nosso respeito, não somente pela importância vegetal que desperta, mas, sobretudo, pela antecedência que mantém dessa presença acadêmica de hoje! Aqui não se estuda somente a tecnologia, mas investiga-se a história e a botânica” E a palma comeu no centro. Foi uma festa!

E faz tempo que não vejo Mozart! A vida é interessante! Ele está em São Paulo e eu continuou por aqui, na província. As amizades são assim, vivem do efêmero, mas sobrevivem às distâncias e quando nos encontramos ou nos telefonamos, parece que resgatamos este passado comum. Rimos, quase sempre, às bandeiras despregadas.

Entrou por uma perna de pinto, saiu por uma perna de pato, senhor reitor mandou dizer que contasse cinco.

(*) – Uma crônica que ofereço a Mozart Neves Ramos, com quem convivi tanto tempo, e a quem representei tantas vezes nas solenidades da vida. Penso que ainda vou escrever um livro com o título Histórias Pitorescas de um Reitor – contando os meus casos –, pedindo a ele que faça o Prefácio e os confirme. Acredito, piamente, que Amaro Lins há de mandar publicar.

sábado, 19 de abril de 2008

"Meu filho: O que é um Fax?”

Um belo dia, meados da década de 50, o meu pai à mesa – costumávamos almoçar juntos –, virando-se para mim, deu conta da boa nova: “Acabaram de inventar o cérebro eletrônico!”. E o que é isso? Foi a indagação que fiz, da forma a mais curiosa possível! É uma máquina grande, capaz de realizar operações matemáticas sofisticadas e que dispõe de memória, explicou. Nascia o computador, equipamento que eu só viria ter acesso quarenta anos depois. Na verdade, as pesquisas andavam rápidas desde a década anterior, mas aquela notícia que me dava, talvez coincidisse com a invenção do transistor, uma peça que substituiu com ganhos a válvula. E esse pequenino componente eletrônico fez muito sucesso depois, sobretudo com a utilização em rádios portáteis cada vez menores. Era chique, elegante, sair com a namorada portando um desses minúsculos receptores ou era prático caminhar, para o trabalho ou para o lazer, ouvindo-se o jogo de futebol ou a música preferida. O rádio da marca spica, então, conquistou corações no Parque 13 de Maio. Havia quem pedisse uma volta com aquele receptor que nascia.

Às vezes, fico matutando, imaginando o quanto o meu pai perdeu, desatualizou-se, morrendo pouco antes do desenvolvimento da Internet e dos avanços todos que a humanidade assistiu e assiste. Não alcançou – é claro – o uso do telefone celular, embora tenha visto e se utilizado do chamado telefone sem fio. Mas deixou de contar com esse adiantamento da ciência, que vem tornando a invenção de Grahn Bell cada vez mais sofisticada e cada vez mais polivalente, com a possibilidade de arquivar dados os mais diversos e de se comunicar com o mundo inteiro. Dia desses, numa ligação comum, local, sem usar o artifício do DDD ou do DDI, falei com um amigo na Turquia e conversei com outro na Suíça. Veja só o leitor! É de tirar o chapéu mais de 30 vezes, diria o meu pai! E nessas horas lembro de quando era necessário falar com uma tia que morava em Juiz de Fora, o tempo de espera para que se completasse uma ligação. As noticias seguiam, quase sempre, por telegrama ou por radioamador. E as informações demoravam a cruzar espaços hoje tão curtos para a voz. Agora, aciona-se um programa nessa máquina da modernidade e fala-se em tempo real com a Europa. Que coisa!

Essas mudanças foram tão rápidas, mas tão rápidas, depois da popularização da televisão, que havia resistência por parte de alguns. Lembro de um tio paterno que se negava, peremptoriamente, a admitir em sua casa um equipamento desses ou renegava a utilização até do refrigerador, defendendo a compra diária das verduras e das frutas para as refeições, como da carne, à semelhança do que sucedia em seus tempos interioranos. Ou de outras assertivas ótimas desse parente – o tio Cicero –, que sendo espírita convicto, nunca admitiu a ida do homem à lua e me disse muitas vezes: “Na lua, meu filho, nada existe, senão uma plantação enorme de alface!”. Pior a minha avó paterna, diante das últimas notícias do Repórter Esso, falando do sputinik, o primeiro satélite artificial: “No dia que o homem chegar à lua, o mundo se acabará!”. Não viu, quando em 1969, um semelhante pisou no imenso e majestoso astro, que encanta os namorados e assusta os lobos nas estepes friorentas.

Quando o tempo de meu pai começou a mostrar sinais da finitude e eu já olhava as suas mãos mágicas de bom escritor e de cronista do cotidiano sempre bem inspirado, sabendo que em breve as deixaria de ver, ele me perguntou: “Meu filho! O que é um Fax?”. E eu, querendo explicar da melhor forma, disse-lhe: “É um telefone, através do qual se transmite um documento qualquer. E o texto ou a imagem é recebida do outro!” E ele, olhando um aparelho convencional que tinha em seu quarto de estudos – a “Jaula”, como chamava –, verbalizou: “Não posso entender como um papel pode sair de um telefone?!”. E não podia mesmo, porque para tanto o equipamento é diferente, mais sofisticado e maior, como dispõe de uma janela para receber a página a ser transmitida e conta com uma bobina que imprime a matéria recebida. Eu, que ainda estava me familiarizando com o Fax, não tive a lucidez de lhe explicar melhor. E assim foi!

Ainda chegou a ver um computador e tomar conhecimento das vantagens sobre a sua velha e muito usada Olivetti Lettera 22, que imagino ainda esteja por lá, no lugar em que deixou, há contados 16 anos de ausência. Mas negou-se à substituição, mesmo que fosse por um período de experiência apenas. Estava habituado com a sua máquina de escrever, com o seu carbono para tirar a cópias dos artigos e com as suas borrachas que se encantavam ou se escondiam sob a desorganizada – todo escritor é assim – mesa de trabalho. Sempre tive uma curiosidade aguçada pelo moderno das coisas e certa vez levei à sua casa, para seu exame, uma máquina fotográfica Polaroid, dessas que revelam o retrato na mesma hora do flagrante. Achou ótima e penso que fizemos algumas poses com aquele apetrecho hoje em desuso. Não viu os modernos e digitais aparelhos, verdadeiros engenhos da informática, que determinam, de forma automática até, o foco e calculam a incidência da luz, mostrando no visor a foto recente e permitindo depois ao penitente de ocasião polir o próprio retrato, retirando-lhe as marcas do tempo.

(*) Esta crônica eu a escrevi em momento de isolamento e de enlevo d’alma, numa madrugada insone. E o fiz atendendo à sugestão amiga de José Thadeu Pinheiro, figura afável de colega, de companheiro sempre atencioso e sobretudo cioso da valia e da importância de uma amizade. Ele não conheceu meu pai, senão de vista, numa palestra pronuniada na velha Faculdade de Odontologia de Pernambuco, a FOP de Edrísio Pinto, amigo de Nilo Pereira. Edrísio gostava de levar intelecutais de outras áreas à sua escola. E Thadeu ouviu a história do Fax, gostou e sugeriu. Aqui vai o texto.

quinta-feira, 17 de abril de 2008

A Solidão é Fera

Estava sentada em frente à loja de conveniência, bem vestida e bonita. De blazer à moda jurídica de ser, mas não era advogada, disse-me o rapaz que vende a cerveja das minhas preferências: a Heineken. Naquele dia, trouxera, também, uma garrafa de Marcus James, para homenagear Alfredo, que nos domínios de Aldeia cuida em recomendar o bom vinho. Entende da bebida nacional e sabe melhor das patentes chilenas, mas não resistiu à marca que lhe ofereci do fermentado líquido de uvas espanholas. Não descuidei, de forma alguma, daquela penitente. Não podia descuidar! O que fazia ali tão cedo do dia? Um sábado qualquer, antes da viagem ao meu canto, onde costumo me encantar, ouvindo a sonoridade dos pássaros, da guriatã agora, que vai se aninhando na mangueira.
Chamou-me a atenção a cena e o cenário. A personagem, mais ainda, pois que tinha tomado um desses cafés servidos em copinhos de papel reforçado, colhido, diretamente, da máquina e pitava, com um gosto inusitado, um cigarro Hollywood, sem ligar para as proibições da hora. Acompanhava, por vezes, as espirais que saiam compondo a fumaça que expelia, desenhando nos ares verdadeiras rodas ou verdadeiros aros do nada. Indaguei ao vendedor, com um jeito curioso: “Quem é a penitente?”. Ele pouco sabia ou de quase nada sabia, senão que todos os sábados ia por lá. Sentava no lugar de sempre, abria um livro e num papel branco, muito branco, escrevia o quanto podia. Às vezes, parava e olhava para o mundo, refletindo alguma coisa, para em seguida grafar na pureza virginal da página os seus pensamentos e as suas meditações.
Pedi ao atencioso rapaz que olhasse os títulos dos livros que lia. Isso poderia oferecer alguma pista nessa inesperada investigação de ocasião. Uma pensadora? Ou uma cientista social? Uma psicóloga? Afinal, por que estaria lendo em lugar assim, numa manhã tranqüila de um sábado qualquer? Um meio-feriado, quase digo! Fazia um exercício intelectual de forma diferente e estranha, exótica até. Nunca vi isso! Quando era estudante de vestibular, fui, algumas vezes, ao Parque 13 de Maio estudar, pois o bucólico lugar era, ao tempo, muito aprazível. Diferente de hoje! O rapaz conseguiu obter, senão os títulos, propriamente, mas os temas abordados pelos volumes que tinha sobre a mesa: versavam sobre os horrores do câncer. Valha-me Deus! Um desses tratava, particularmente, da questão feminina: o câncer de mama. Seria, então, uma médica? Não, não é, respondeu o meu interlocutor de momento. Talvez psicóloga, adiantou! É possível, voltei a comentar. Na dúvida, porém, decidi me aproximar um pouco, optei por uma observação mais cuidadosa. Fui como um antropólogo, cumprindo uma função de campo.
Tinha um biótipo que impressionaria Lombroso, com toda certeza, aquele estudioso do homem segundo as características físicas. Brevilínea ou Pícnica, pois sendo baixinha era tendente às formas exuberantes ou protundentes. Ou tinha a estatura mediana, como cabe ser, e estava começando a sair das medidas de corpo, mais para cheia ou para cheinha, do que mesmo para a magreza das esqueléticas modelos. A tirar pelas medidas do busto, generosos pingentes lácteos, sem que fossem fartos, não tinha sido – Deus seja louvado! – atingida pelo caranguejo maligno, certamente. As pernas eram grossas, como aquelas das bonitas e elegantes senhoras dos anos 60. Enfim, uma mulher vistosa! Casada, solteira ou viúva? Perguntaria o velho guerreiro: Chacrinha. Se vivo estivesse e por cá viesse! Casada, parece, mas divorciada, largada, como diria amigo meu, que morreu de tanto fumar. É, como diz Alceu Valença, e lembrou o atencioso vendedor: “A solidão é fera, a solidão devora./É amiga das horas prima irmã do tempo/E faz nossos relógios caminharem lentos/Causando um descompasso no meu coração/...”
Da solidão, ao que parece, poucos gostam. Os poetas, talvez, pela inspiração do isolamento e a facilidade que têm com o emergir do verso. Os artistas, também, quando esperam o estalo mágico da criação, seja o pintor, por exemplo ou o compositor, erudito ou popular. Um Beethoven ou um Chico Buarque, tanto faz, porque o talento é o mesmo. Mas, para nós, os mortais de todos os dias, melhor ser gregário, cercar-se de outros e sobretudo de outras. Uma vez, num hotel em São Paulo, a cidade dos solitários, vi uma mulher, na casa dos seus sessenta e tome força, que morava ao lado e nunca ia dormir sem a companhia de um dos garçons. Era um rodízio, disseram, cada qual no seu dia e cada qual na sua hora. Tempos depois voltei ao mesmo lugar e a vi, outra vez, estava velha e carcomida, feia – a idade é uma máquina de fabricar monstros –, mas vivia com o pianista do lugar. Trocou a meninada na flor da idade pelo maestro quase senil já, mas ficou com ele até o fim de seus dias.
De outra feita, em Belo Horizonte, uma senhora sozinha no prédio vizinho jogava paciência horas seguidas à noite, enquanto o canário belga, acordado – coitado! – com a luminosidade da sala, cantava seus maviosos acordes, encantando e engananado o gato pachorrento, que dormia na outra ponta da mesa.
Eis a crônica de uma solitária mulher diante de uma loja de conveniência qualquer.
(*) Uma história quase verídica ou um fato quase real, enfeitado pela imaginação do autor e adornado pela ficção que emerge sempre que a inspiração aparece. Depois de ler comente aqui mesmo, no Blog ou não comente. Escreva para o e-mail pessoal: pereira@elogica.com.br ou ainda para pereira.gj@gmail.com ou ainda não escreva e não faça nada. Bom feriado!

sexta-feira, 11 de abril de 2008

A Normalista Linda

Sou do tempo do gasômetro e do bonde elétrico, do telefone cônico no ouvido e do largo bocal voltado às palavras de um interlocutor qualquer, que aos gritos deixava a sua mensagem, sem as sofisticações do hoje. Das ligações para Boa Viagem intermediadas pela telefonista, atenciosa sempre, do Serviço de Informações Gerais - o SIG -, cujo número gravei na memória (3011) e para o qual ligávamos, todos, à cata dos melhores filmes e das localizações urbanas das ruas e das avenidas, dos becos e das vielas ou à procura de uma conversa fiada assim, com a moça da empresa. E a resposta vinha antecedida por um comercial, chamado de reclame ao tempo: "Num presente exclusivo das Pílulas de Vida do Doutor Rossi, o cinema São Luiz exibe nesta tarde o desenho animado de Walter Disney: Peter Pan!". Mas, alertava a minha mãe, sempre, se alguém ligar e fizer uma pergunta - "Rins doentes?" -, não esqueça de responder: "Tome Urudonal e viva contente!". Havia prêmios, dizia ela, para quem acertasse! Nunca ouvi a indagação e muito menos conheci as benesses resultantes!

Ou sou do tempo em que o sabonete Phebo oferecia uma casa a quem fizesse uso do produto, trazendo escondida, nessas intimidades saponáceas, uma chave. Todos, então, cuidavam em passar no corpo, mais e mais, aquele escorregadio pretume, para encontrar a salvação da família inteira. Nunca soube, também, de penitente aquinhoado, brindado com essa riqueza, a da casa própria. Vez ou outra, todavia, a marca Lever vinha à tona, o sabonete das estrelas, para que se pudesse cumprir o desiderato do devaneio, fantasiando-se no imaginário pueril Brigitte Bardot tomando um delicioso banho na Riviera Francesa. Quem colecionasse tampinhas de Coca-Cola podia ganhar um carro da marca Skoda ou geladeiras em quantidade. Uma dessas tampinhas, entretanto, tornou-se de tal forma difícil, que virou apelido de quem se julgava importante: G15. Até as marcas de sorvete agradavam ao consumidor, expondo nos palitos o direito a mais um picolé, Daqui, por exemplo, com o gostoso Tatá ou com o Saía-e-Blusa.

Na soverteria Xaxá, nos começos da rua Bispo Cardoso Ayres, a rapaziada do Nóbrega fazia ponto, para assistir o desfile das moças do Colégio Eucarístico, de branco e encarnado, escuro e carregado ou para saborear o maracujá e o cajá virados em gelo de bom paladar. Lá pras bandas da rua do Príncipe, esquina com a Afonso Pena, partiam as meninas do Colégio Arquidiocesano de volta ao lar paterno, primeiro e derradeiro abrigo, na voz do poeta: “Vestida de azul e branco/Trazendo um sorriso franco...” ou como está no mesmo cancioneiro Mas, a normalista linda/Não pode casar ainda/Só depois que se formar..." Gente assim, bonita e faceira, de pele estirada, no viço da idade, de protundentes formas, preferentemente, tagarelando conversa! Saias rodadas, mesmo que plissadas ao rigor do ferro quente, dando graça ao requebrado das ancas, engrandecendo movimentos de lateralidade explícita! Muitos amores nasceram nesse lero-lero das coisas, de um flerte qualquer no meio da rua ou no passeio e muitas dores ficaram nos ares, como evanescentes ardores dos começos!

O conquistador desvairado, entretanto, acomodado em seu Mustang, da cor do sangue, tirou de tantos o gosto da sedução, rodando a chave do carro no indicador da direita, nas alamedas do parque ou nas festas das igrejas. Aniquilou desejos que se encorparam pras bandas do novo edifício, o Vitória Régia, tomando de assalto a musa daquele prédio, Agnes de prenome! Encantou a gregos e a troianos – ela, a musa –, mas desencantou vontades, menos a do padre, cuja batina dormia no convento e ele nos sedutores braços de Agnes, aquela santa mulher de minha rua!

(*) - Uma crônica que se vai assim, na roda dos anos ou que se esvai no tempo vencido, ido e vivido.

quinta-feira, 3 de abril de 2008

Parecia uma Assombração

Estou pensando – pensando apenas – em escrever um livro reunindo as minhas histórias, sobretudo aquelas com um conteúdo pitoresco. Evidentemente, nada tem a ver com as minhas memórias, as quais, de uma forma ou de outra, as tenho divulgado no Jornal do Commercio, do Recife e aqui, neste espaço virtual. Confesso que tenho histórias – nunca estórias – em quantidade, e preciso somente começar a anotar certas lembranças, para depois desenvolver cada um dos temas em particular. Ninguém tem a capacidade de redigir tudo a uma só vez! Isso é um projeto lento e vai sendo construído aos poucos. Depende do aflorar dessas lembranças, já antigas agora. É claro que há outros projetos mais sérios antes desse pretenso volume, razão para não cumprir o compromisso de publicar mais um livro este ano, como pensava fazer. Não custa, então, ensaiar dois ou três fatos desses que tenho. Aqui e agora!

Era madrugada e eu estava no pavilhão de isolamento atendendo a um doente que passara mal. De repente, no fim do corredor, um grito forte de outro doente: “Me acuda, pelo amor de Deus!” Sai correndo e fui ver o desesperado paciente. Indaguei o que se passava e ele me fez a seguinte pergunta:“Qual foi o resultado do jogo do Brasil?”. Mas, meu amigo, disse de logo, como é que o senhor grita assim e ao final faz uma pergunta dessa? E a resposta: “Doutor! Aqui só se atende mesmo a quem está morrendo!”. Terminei rindo e informando que a seleção tinha perdido. O homem tinha leptospirose – vivia-se uma epidemia –, recebendo todos os dias a visita da esposa. Era interessante, porque ela não indagava se ele estava melhor. Dizia sempre: “Morreu?” E eu respondia: “Não morreu!”. E apareceu uma segunda criatura, com a mesma formulação: “Morreu?” Não morreu!”. Até o dia em que pude dizer a ambas: “Não morreu! E não morrerá mais!”. Tiveram uma decepção, queriam a previdência do penitente.

Pior o soldado de policia, que barrado à porta da enfermaria de doenças infecciosas – doenças contagiosas – ameaçou derrubar tudo a bala e entrar para visitar um parente ou uma mulher de seus afetos, já nem me lembro ao certo. Foram me chamar, porque eu era pau para toda obra, me obrigando a um diálogo inóspito com o autoritário policial: “Meu senhor! Isso aqui para ser construído foi um horror, para ser instalado precisou de uma enchente e a conseqüente epidemia de leptospirose. Não vale a pena derrubar tudo!” E ele insistia alegando a sua autoridade e a impossibilidade de ser barrado assim, como estava sendo, em qualquer lugar deste mundo de Deus. Sendo dessa forma, terei que desrespeitar as ordens do comandante da polícia, expliquei a ele, inventando coisa. E ele, mudando de idéia: “O senhor tem toda razão! Vamos respeitar as ordens do coronel!” E aquilo lá nada tinha a ver com militar e muito menos com a corporação. Mas, para milico autoritário, só três estrelas e três gemadas.

Depois, fiz um concurso para trabalhar em instituição fiscalizadora do exercício da medicina. Ia de hospital em hospital, de clínica em clínica, de serviço em serviço, a todos os lugares onde a ciência de Hipócrates fosse exercitada. Era um rolo! Uma vez, então, houve uma denúncia a propósito de certa instituição psiquiátrica, na qual os dias feriados passavam descobertos, sem médico plantonista. Num certo sábado, com a família toda no carro para ir à praia, decido comparecer ao estabelecimento em causa e lá chegando dirijo - me ao vigilante: “O médico de plantão, por favor?” E a resposta foi rápida e estudada: “Médico de plantão não tem, mas tem um enfermeiro ai que é mais competente que muito médico!” E eu: “Chame ele, por favor!” E veio um homem moreno escuro, de compleição física avantajada, dobrado como se dizia ou um guarda-roupa quase. Claro que não era um enfermeiro, mas um auxiliar. E só vendo a perplexidade da criatura, quando soube quem eu era. Foi processado o hospital e do resultado, francamente, não lembro mais.

Por fim, um caso de histeria em pleno ambulatório dos comerciários. A mulher estava toda dura, rígida como um cadáver, espumando e babando, os olhos virados. Parecia uma assombração! O colega que fazia o atendimento cuidava em medir a pressão arterial e auscultava o coração com todo zelo ou desvelo. Era novo, sem experiência em serviços de urgência e creio eu nunca tinha visto uma encrenca assim. Ia e voltava sem diagnóstico. Resolvi, então, intervir e chegando junto ao ouvido da paciente disse-lhe, cochichando: “E melhor a senhora ir embora. Estão se preparando e vão lhe operar sem anestesia." A mulher ainda hoje corre pela rua, desnorteada, sem paradeiro. E o medico, absorto, quando chegou, nunca entendeu o que se passou. A paciente curara sem mais nem menos. Um milagre, então!

(*) Crônica que publico ensaiando um possível volume das minhas histórias, pitorescas sobretudo, com o objetivo de sondar a reação do leitor e tomar coragem ou desistir da empreitada. Comente no Blog mesmo ou comente para pereira.gj@gmail.com Diga lá se vale a pena tomar a iniciativa e publicar tudo isso. Sem o leitor, francamente, ninguém faz nada.