sexta-feira, 28 de setembro de 2007

Retalhos do Tempo

É sobretudo nostálgico este exercício de rever álbuns de família, nos quais as antigas fotografias, de pessoas isoladas ou de grupos reunidos, resgatam pretéritos muitas vezes tão remotos, que não é mais possível identificar os figurantes daquelas cenas gravadas no papel. Poses estudadas das famílias, em tardes mornas de sábados distantes. Tempos hão de chegar, todavia, para todos, como aqueles dos bisavós, nos quais os retratos quase não fazem mais sentido, pois que os circunstantes todos já se encantaram no infinito das coisas e não se tem mais enredo para as histórias. Ninguém se lembra, verdadeiramente, de anotar datas e nomes, de registrar melhor os momentos, descrevendo quadros de convívios passados. Pior agora, com a fita de vídeo reproduzindo vozes e movimentos, repetindo passagens de felicidade, no mais das vezes bem vividas. Filma-se tudo hoje em dia, do matrimônio festivo ao nascimento dos filhos, das comemorações de aniversário às bodas de prata ou de ouro, poucos, porém, aludem às ocasiões que vivem, deixando, assim, as interrogações todas para quem no futuro rodar as películas, resgatando os anos. O milagre da técnica, porém, humaniza a vida, permitindo o rever dos grandes espetáculos da existência, na imagem estática do papel ou no mais do que dinâmico rodar do celulóide! É preciso, mesmo, parar e regressar na roda dos anos, porque foi dessa maneira, tijolo sobre tijolo, que se fez o hoje e se fará o porvir!

Mas, o velho álbum de capa de couro, afivelado com peça de metal fino, retratando poses de um fim de século, de sinhás e de sinhazinhas, como de senhores de fisionomias pesadas, é, apenas, um documento para a História, sem os afetos, todavia, que por certo marcaram o então ver e rever de documentário tão significativo. Impossível para aqueles atores a previsão de que um bisneto ou um sobrinho, na mesma ordem de distância parental, pudesse, cem anos depois, indagar sobre prenomes e sobrenomes ou pudesse fazer perguntas de cunho sociológico! Saber do velho austero, de longas barbas ou da senhora de vestido muito longo, também, arrastando no chão, praticamente, como o da sinhazinha tímida, escondendo a hora! Que ocasião fora aquela? Um aniversário ou um casamento? Ou simplesmente o dia de receber o fotógrafo, como aquele da infância, do pai muito novo, ainda e da mãe muito mais! De que serve isso? Hão de perguntar, com certeza, na imensidão de todos os infinitos, aqueles circunstantes, enfim, que já se encantaram nas eternas e eternizadas dimensões. São retalhos do tempo - Isso sim! - reunidos dessa forma, um século depois! Fragmentos de muitas vidas flagrados em poses para a posteridade das coisas! Na parede, entretanto, o retrato do Barão, o patriarca, retocado a óleo, justifica os começos, a prosperidade de antanho e a antecipação da débâcle e noutra parede, bem longe, mais um dos primórdios, de barba muito grande e sisudez estampada, como cabia mesmo à época. Pai e filho, separados assim, numa grande largueza dos espaços e do tempo!

E as fotografias mais recentes, de trinta, quarenta anos pra trás? São lembranças, nada mais, de convívios experimentados e de afetos sentidos, somente! Vários daqueles atores, igualmente, se foram dos cenários da vida. São fantasmas, agora, nas coxias! Coleções inteiras da família, reunidas em folhas e folhas de papelão grosso e escuro. Retratos presos por cantoneiras finamente postas, de forma simétrica, nos vértices das recordações perdidas, sustentando saudades. Retratos pequeninos, também, que selavam amores ou que vinculavam namorados em desesperadas paixões, oferecidos, às vezes. Dedicatórias copiadas até dos livros de cabeceira dos amantes enternecidos. Devolvidos, depois - os pequeninos retratos -, nos momentos das rupturas, pra que não restasse, entre os devotos de Cupido, pedra sobre pedra das vinculações e dos sentimentos. Dos afetos, finalmente e dos afagos, muito menos! Lágrimas, tantas vezes, das despedidas choradas assim, nesse pranto da entrega de um retratinho. A materialização, pois, da perda da imagem, que representa a fuga do semblante da criatura amada, definitivamente afastada! Rendição dos amores em corredeira das dores, simbolicamente representada por esse resgate da face; da face e do busto, no jogo das rendições. Ocasiões guardadas no cofre dourado das digressões d’alma, fugas, pois, do cotidiano e das rotinas em tempero dos sonhos.

E na sala de casa, a mãe e a irmã, a convite, ambas, assistiram ao filme de vinte e oito anos pra trás, de uma festa familiar naqueles idos, depois que a película antiga, rodada em Super 8, sofreu a metamorfose da modernidade e se adaptou ao vídeo. Um desfilar de cenas inseridas, apenas, nos porões da memória, de gente que não existe mais ou de fisionomias hoje completamente mudadas, marcadas com o estigma das rugas, que representam os caminhos percorridos e pela senectude, que caracteriza o declínio da criatura humana. Era um momento de tanta alegria, refletiram elas! Os quinze anos de uma sobrinha e prima, com a presença de muitas outras. Umas postas ali na condição de damas, como alguns - os primos -, assumindo o papel de cavaleiros, antecipando a existência do hoje. E ao som da valsa, o pai toma a filha pela mão e rodopia no salão, apresentando à sociedade a debutante daqueles antanhos, acompanhado por um séqüito de jovens que são quarentões agora e novas festas preparam, continuando o ciclo da vida. Nas mesas, em volta, aqueles atores da noite coloriam o quadro das satisfações emergentes, riam por nada, parece, simbolizando a satisfação d’alma de cada um. Sorrisos largos e inocentes, ingênuos, tantos, davam conta dos espíritos livres e desarmados ali, transferindo a beleza dos convívios parentais, nem sempre sinceros, para os ares da festa. Difícil imaginar, naquela hora, que depois, muito tempo depois, o cenário servisse a nostálgicas lembranças!

Ah, como é penoso, às vezes, resgatar antigos momentos, gravados assim, no papel ou no celulóide, definitivamente passados. Perdidos, tantos! Amarelados ou desbotados, simplesmente, todos!


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sexta-feira, 21 de setembro de 2007

Maria Betânia

Em noite úmida, de chuvisco intermitente, em pleno coração da velha zona boêmia, onde tantos e tantos amores já foram chorados em braços alheios e paixões desesperadas, mesmo que proibidas, esfriaram com outros abraços, bafejando do caís um sopro friorento de madrugada gestante, Nelson Gonçalves deitou e rolou. Sob as vistas e os aplausos calorosos de prostitutas remanescentes e cafetinas insistentes encantou a toda gente, do remediado da sorte ao ameaçado de morte pela malsinada economia dos poucos, neste insalubre rincão dos passeios de Darwin. E antes que o boêmio chegasse com a maviosa voz das fadas, Eliane Ferraz cantou e encantou também, rebuscando lembranças e revirando saudades. Por certo que a moça, a tirar pelo sobrenome, vem dos sertões esturricados ou das caatingas desnudas cantar loas urbanas, enaltecendo o recanto e recuperando cantos, abrindo com o bisturi da voz feridas mal cicatrizadas nos sentimentos d’alma.

Em trajes de gala para mais uma noite de carinhos vendidos e afagos medidos, três mulheres, meninas quase, desfilavam garbosas por entre o povo comum, dando ao corpo uma trégua que fosse à guerra dos desamores. Prontas estavam para o ofício antigo, de roxo todas, com adereços doirados, preparados para o mais difícil dos labores, entregar-se, sem amor e sem ódio, à gana desenfreada dos machos vencidos pelos reclamos desgraçados da carne. Afetos nascidos da precisão do metal, paridos sem gosto, no desgosto medonho de não ter profissão, senão aquela, a de dar sem receber, de amar sem ser amada. Depois, no amanhã dos tempos, quando o peso dos anos vergar os ombros e pratear os cabelos, é hora do desprezo dos homens. Quantas e quantas já se foram, tangidas pela indiferença humana, chorar desgraças em lágrimas sofridas da solidão? Marias, com a mais absoluta das certezas, muitas, severinas outras tantas, mas sebastianas, marinas, ritas e ivonetes também! Deixaram, no sinuoso trajeto do existir, sem que pudessem viver, sombras nada mais, de faces moldadas na argila da beleza e réstias de corpos bem desenhados, traços mouriscos da miscigenação tupiniquim, entre brancos de linhas avantajadas e negros nascidos no mais puro pretume d’África. Seios que embalaram sonhos, oníricos ou não, em devaneios momentâneos, pagos sempre em moeda corrente, como se a fantasia pudesse emergir de águas assim, turvas, na sujeira que o dinheiro tem e produz.



Na minha frente, um senhor, moreno na tez, de têmporas colorindo os anos, entusiasmado, ouvia as cantigas todas, exagerando-se em palmas, como se aplaudisse o tempo perdido, num rever de um filme tantas vezes mostrado, exibindo saudades na tela da vida. Pedia, a toda hora, transformando em conchas as mãos, para gritar mais alto, a letra de suas preferências: “Maria Betânia”. E quando Nelson cantou, abriu-se em pranto baixinho, sem incomodar os outros, chorando certamente um amor partido e perdido, deixado pra trás nos espinhosos caminhos do afeto. Deu vontade de perguntar, de indagar com respeito: a quem tanto amara? De saber dos lugares de que se lembrava? Fora gente do caís? Ou fora gente de outras paragens que não lhe entendera os sentimentos e não lhe compreendera os desejos? Branca, talvez, com preconceito de cor ou negra, morena ou mulata? Não sei, não perguntei, não pude, impediram-me os céus, molhando a gente e dispersando o povo. Tantos os que andam assim, vivendo de recordações, buscando aqui e ali uma brecha de vida pra caber lembranças! Momentos assim, preenchidos com notas musicais do amor, ocasiões meritórias das fantasias de um reviver, apenas!



Ah meus tempos, meus amores e minhas dores! Ah meus sentimentos, expostos agora na beira do caís, embalados nas ondas do mar das ilusões, oceano das lembranças, águas paridas da intimidade atlântica, regidas pela batuta da desses imaginários exílios do tempo. Eis a crônica de um reviver, oferecida, como todo o amor do autor - platônica digressão esta, a de amar a toda gente -, à solidão feminina, às mulheres que amaram e amam, perdidamente, o encantado príncipe dos anos.



Deus guarde “Maria Betânia”, a de Nelson e as outras, incluindo a prima do escriba aqui, vizinha quase e todas as marias do mundo.




Crônica escrita e publicada em abril de 1992, depois de uma apresentação de Nelson Gonçalves no Recife Antigo.


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sexta-feira, 14 de setembro de 2007

Em Tempos Assim


Sentado agora, diante do computador, vendo as letras emergirem fluorescentes da intimidade da máquina, lembro-me dos velhos e já muito distantes anos de grupo escolar, quando sequer imaginava avanço tão grande. Ah, como as coisas mudaram nesse interregno de tempo, cinco décadas, pouco mais ou pouco menos! A professora, Dona Maria do Carmo de Albuquerque Mello, ia todos os dias ao quadro-negro escrever o ponto, isto é a matéria a ser explicada e depois estudada; ponto, aliás, cuidadosamente, copiado por todos nós. Por mim e por Luiz Fernando, meu colega de todos os bancos escolares, por Carmen Silvia e por Silvio Romero Marques, por Walfrido Antunes e por Carmen Chaves, ela musa das aulas e dos recreios. Havia uma inglesa de nome Ana, se bem me lembro, que no dia da coroação da Rainha Elizabeth II me deu de presente um lápis com o clássico: God Save the Queen. Onde andará, em que terras estará aquela figura loura, de cabelos quase brancos? E a outra colega das morenidades provincianas, Vera de prenome, cujo sobrenome omito por hesitação da consciência? Nunca mais as vi! Perderam-se, penso eu, na longa noite das décadas, trevas de todas as lembranças. Perdidos também ficaram os devaneios de todos os meninos. Sonhos pueris.

Nesses princípios de meus convívios, francamente, tudo ou quase tudo era muito bom. Deliciosa infância a minha. Camisa branca com o monograma da escola, calças azuis e sacola de lanche pendurada, levando o de sempre: pão com ovo frito e guaraná. Era jovem a minha mãe e o meu pai muito novo, eu sequer imaginava os cabelos brancos de hoje, tampouco as rugas da face e o vergar do corpo cansado com as agruras do mundo. O tempo passa e a gente marca! Sou da geração nascida na guerra, criada no pós-guerra. Trago o signo da beligerância mundial e a carência dos amamentados durante o blackout. Fui daqueles que educados pelos jesuitas, pelos salesianos ou pelos beneditinos traz o sinete dos pecados da carne, com quase nada das necessárias tinturas das grandes virtudes humanas: a caridade e a fraternidade. Das proximidades, enfim, dos valores d'alma.

Geraçao da metamorfose do tudo, das ciências e dos costumes, posta como recheio no sanduiche da modernidade, entre o antigo dos anos 50 e o moderno das décadas que se seguiram, assistindo agora a materialização do progresso de que falava meu pai, antecipando futuros. Pena que não os veja mais! Desatualizando-se, pois! Saudades agora de um porvir que não veio. Nostálgicas digressões de um órfão, passado o dia dos pais, de todos os viventes e os não-viventes. A caderneta da venda de seu João rendeu-se à tecnologia dos grandes supermercados, nos quais o simples digitar de senhas ou de números transfere da conta os valores em reais. E os livros dos estabelecimentos bancários, como os vi, enormes outrora, deram lugar às máquinas da modernidade, contabilizando ganhos e perdas. O fax chegou e não há como reverter os avanços - muito mais há de vir -, sendo impossível buscar nas gerações que emergem vocações para as cartas de amor, epístolas dos sentimentos.

No computador, porém, não escrevo; não posso criar, confesso! Nego-me a tanto! A padronização do écran inibe o exercício da criação, impede a expressão dos sentimentos no abraço das letras e na inclinação da escrita, segundo os afetos. Pode o amante digitar os seus amores nesse teclado das friezas emergentes? Ou pode a saudade tomar corpo no branco desta tela, sem macular, assim, purezas virginais do alvo que tem o papel? Não há como ler, aos cochichos, a crônica impressa no vídeo, detectando sonoridades e afastando barbaridades, choques indesejados. Antes as rimas, nas tintas sempre!

(*) Texto escrito e publicado na primeira metade dos anos 90, pouco tempo depois da perda paterna, quando o autor imaginava que não se renderia à força da informática, preservando o poder quase mágico da máquina de escrever. Rendeu-se!



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sexta-feira, 7 de setembro de 2007

Cerejeiras Desfolhadas

Ainda é madrugada em Tóquio, descubro agora, nesta hora da antecipação de meu despertar, de um levantar mais do que precoce. E um vento frio, gélido, quase, vindo das montanhas distantes, sobretudo da enormidade do Fuji, assobiando a melodia de todos os zunidos, açoita as árvores e parece espantar a noite. Executa, em verdade, a lúgubre musicalidade do recolher dos fantasmas, com o clarear do dia, aos porões dos castelos abandonados, onde antigos casais enamorados, às escondidas dos censores, amaram-se, perdidamente! Ou anuncia, em realidade, o nascer de mais outra manhã de sábado, nesta prolongada estadia em terras nipônicas.
É hora, também, de aproveitar o momento, de se deixar mergulhar, com a integralidade do ser, nas reflexões do Eu, para que não se perca um minuto, sequer, da existência humana, tão efêmera, já! À falta de um interlocutor, pois que todos dormem, no hotel e fora dessas acomodações transitórias, exercito o monólogo ou pratico o diálogo virtual do homem só, que enfrenta indesejadas vigílias. Ensaio, pois, perguntas ao léu e eu mesmo as respondo, cumprindo o destino das insônias, de conotações orientais, agora. Fazendo, então, da vigília a tela da minha única pintura, a qual vou emoldurando assim, com as minhas expressões de neófito, sempre, na literária arte de tomar a inspiração e transbordar o coração. Permito-me, dessa forma, que o imaginário ganhe as asas do lúdico mundo das fantasias e possa bailar na enormidade da criação.

Para quem os galhos das cerejeiras desnudas, ao pé de minha janela, estão dando adeus? Não imagino. Será para o forasteiro ocidental, posto em quarto de hotel, depois de se alevantar, a fazer divagações d’alma em torno da parição dos dias? Por certo que não! Ou esses movimentos largos, de braços desfolhados, mas repletos de botões, representam uma esperança de um novo florescer das cores? É isso aí, imagino agora! Com as flores de março, resgatam-se os amores e são banidas as dores para a tumba do nada. As paixões desesperadas, que se mostraram impossíveis aos olhos do mundo, vão ressurgir, espero, no emergir das saudades, sobre um arco-íris enorme de pétalas largadas ao sabor dos ares, que depois hão de flutuar à distância, em mares do sul, onde os afetos e os afagos se encontram. E as sereias, amantes do imaginário poético, abrem os braços e recebem os versos, como se fossem abraços de jovens silentes ou ósculos de maduros senhores, de cabelos prateados e de corpos a vergarem na conta dos anos, apaixonados, ainda. A nudez da sereia é diferente daquela da cerejeira – a sakura dos japoneses –, pois que dura a vida inteira e representa a utopia da beleza feminina, da cintura para cima. É preciso perseguir a utopia, buscando, porém, em cada uma das mulheres do mundo, o tanto de sereia que possuem. Ninguém se apresenta ao jogo da vida, desprovida, inteiramente, desses atributos míticos. Aos olhos de cada um emerge a beleza, sempre. Basta olhar e ver.

E numa dessas nuvens de agora, na madrugada de Tóquio, flutua, entretanto, o poeta, exercitando o verso e arrematando a rima, mais e mais. Inspirando-se no porvir muito próximo das cerejeiras, a florescerem na largueza urbana, vai buscando as cores que marcam os sentimentos todos. Lembra-se do lilás e vincula a mansidão do tom à nostalgia das perdas, sentidas, mas aceitas, enfim! A conformação das rupturas, pois. E de logo vem à mente o amarelo, do ouro que reluz, trazendo de volta a esperança de encontros e de reencontros, do rever, então, de certas faces dos outroras ou de transbordantes carícias, resgatadas, então. Do vermelho, tira o fervor, com o qual um dia amou, loucamente, esmaecendo os arroubos d’alma na paz do róseo, de cuja placidez nascem os carinhos. E o azul? É a tonalidade das serenidades estabelecidas, reflete, enquanto vai colorindo os céus com o grande pincel dos amores, afugentando o cinza do firmamento, ameaçador, em tudo, aos ares do mundo e aos pares, amantes em flor, apartados, muitas vezes, na hora e no momento dos amplexos. O que dizer, todavia, do preto? É a ausência de cor, pensou o poeta, a falta completa de esperanças, a entrega do homem às frustrações da vida! Dessa forma, estão as criaturas que acusam os outros por seus fracassos, creditando a terceiros as próprias incapacidades do existir humano. Preenchem o dia-a-dia com a ocupação alheia, julgando o próximo, acusando o semelhante e descuidando de si, sem atentarem para a maior das lições, a que impede a interpretação dos sentimentos, das fragilidades de outrem.
E o dia foi clareando, alumiando o tempo, afugentando fantasias e tangendo os devaneios. A realidade se fez presente e matou os sonhos. As divagações desapareceram num sopro e se aninharam nas nuvens da cidade grande e o ruído da vida voltou. E o inverno, em estertores, cede lugar à primavera em flor.
Amanheceu, finalmente, em Tóquio.
(*) Crônica escrita num sábado qualquer em Tóquio, quando estava já há 30 dias num programa de aperfeiçoamento da Agência Japonesa de Fomento. Momento de saudade e de vazio d'alma, na solidão do quarto.
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