sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Os meus 70 anos

Esse negócio de fazer 70 anos é uma coisa meio diferente. Primeiro, porque o baque físico é notório e o penitente vai se sustentando a duras penas, pra não cair de vez. Eu mesmo faço Pilates duas vezes por semana e tome alongamento pra lá e pra cá. Faço aqui perto, no chamado ETC, uma espécie de shopping de bairro, mas um conjunto de lojas e de escritórios bem arrumado e bem disposto. Chego cedo, ai pelas 8 horas ou quase isso e tenho acesso à vaga de velho. Além da cara e da coragem, um documento grande com a palavra IDOSO me assegura o direito. Vejam só! Claro que ando de esteira elétrica todos os dias, chova ou faça sol e vez ou outra vou ao parque da Jaqueira, onde circulo com desenvoltura, ainda.
Só esqueci – aos 70 se esquece de tudo ou de quase tudo – de ir ao banco dizer que estou vivo, um compromisso que garante a aposentadoria a cada mês. Pelo geral, tenho comparecido aqui em Casa Amarela e quando o caixa me chama, com direito a ficha de idoso, comunico que vim dizer que estou vivo e bulindo. E assim vou recebendo o trocado a cada fim de mês ou começo do mesmo período. Mas, tem essa vantagem, a de não ter mais pudor com a idade, pois que antes, quando começaram a me convocar para essas prioridades do tempo, eu ficava meio brabo, negando os cabelos brancos. O meu bisavô e o meu avô paternos morreram aos 55 anos, pelo que já passei há muito dessa maldição.
A verdade é que a última crônica, a da idade, mereceu muitos comentários, alguns (poucos) no espaço mesmo do Blog e a maioria em mensagens de e-mails, como cabe ser com a modernidade das coisas. Uma irmã que sempre comenta as minhas crônicas, Maria Eliana, disse:
Geraldo: Aí está por você bem explanado. A gente ia vivendo sem pensar que as idades avançavam....E o tempo corria e corre para todos. Você sempre foi vitorioso, até na cirurgia em tempo de tantos e quantos avanços da Medicina. Eu estou em minha SOBREVIDA. Nunca havia pensado nesta sinistra palavra, já comemorando 4 anos no próximo dia 22 de novembro. Vamos que vamos.......quem sabe a Medicina avance mais ainda e o tempo de vida se prolongue. Escreveu muito bem. Abafei pensamentos e enfrentei a realidade... Bjss 
         É isso ai! Não sei se desejo prolongar o meu tempo neste mundo de Deus. Depende de meu estado, físico e psicológico, daqui a 10 anos. Será? Ninguém pode dizer se vai viver mais esses anos todos! Ainda tenho muito a fazer, essa é que é a grande verdade. Cada vez mais aparecem informações para que eu escreva e publique. Bom que tenho onde divulgar os meus artigos. Agora mesmo escrevo um ensaio sobre o meu bisavô, Vicente Ignácio Pereira, que foi médico no Rio Grande do Norte e escreveu um trabalho sobre Cólera. Pois esse ensaio terminou chegando em minhas mãos. Foi minha mãe quem guardou! E eu escrevo sobre isso!
         O meu colega de Universidade e vizinho de praia, onde fiávamos conversa e ríamos às bandeiras despregadas, figura que também comenta com frequência as minhas crônicas e que mudou agora a forma de se identificar, comentou: 
Bem disse Manoel Bandeira, em seu Evocações do Recife, ao referir-se à casa de seu avô: "...tudo ali parecia impregnado de eternidade". Mas, apenas, parecia. Para a criança, o tempo é o momento vivido. Somente ao nos aproximarmos do destino inexorável dos vivos, percebemos que ele caminha junto conosco. Mas esqueça isso. Continue vivendo sua vida vitoriosa. Ela tem sido profícua. Sou seu colega da equipe 70. Meu fraterno abraço. Silvio A. Costa (nova forma de me identificar) 
Eu também tinha grande ligação com o meu avô, mas não tinha essa veia de Bandeira, para cantar em verso o que sentia em sua casa da rua Montevidéu, 77, de cuja agonia demolitória fui testemunha. Derrubam as casas e ninguém indaga se há quem tenha lembranças guardadas naquelas paredes. E eu não a fotografei!

domingo, 19 de outubro de 2014

O meu tempo e os novos tempos

Eu não tinha feito ainda 70 anos de idade, como recentemente aconteceu (4 de outubro) e só agora estou refletindo sobre essa nova condição etária. Quando era mais novo, confesso, nunca parei para pensar na minha sétima década de vida, nunca. O ser humano não pensa nisso, vai vivendo, vai vivendo e quando menos espera a idade avança ou a idade chega. Nos anos da infância não havia tempo para imaginar esse futuro tão distante. As brincadeiras e os deveres ocupavam as horas todas. E na juventude também não, porque o ofício tomava conta dos dias, era um vaivém danado e a cabeça tinha que se dedicar à família, aos estudos de atualização e aos caprichos das injúrias orgânicas.

Ontem voltava para casa com minha mulher e conversávamos sobre as mudanças todas do mundo. Tudo mudou, disse ela, referindo-se ao que vimos de transformação nesse mundo de meu Deus. Saíamos de uma padaria, onde tínhamos feito um lanche, a título de ceia. Isso não havia no Recife do antes e hoje está disseminado, com casas especializadas espalhadas pelos bairros residenciais e também nas cercanias do comércio. E os bancos? Deixaram a condição anterior de estabelecimentos personalizados para se tornarem comunitários. Hoje, as máquinas assumiram as funções dos antigos bancários, que estão resumidos nos interiores das agências a consultores e captadores financeiros.  

Foi ela quem lembrou outra mudança nos hábitos e nos costumes da cidade: o tipo de moradia. Agora, mora-se em apartamentos, conjuntos habitacionais que juntam de uma só vez, quase cinquenta famílias. Mas, não existe mais quintal ou não se brinca nas ruas, como sucedia outrora. Até a geração de minhas filhas isso era possível, porém o tempo e a violência mudaram esse comportamento. Não se pode mais! E o extraordinário desenvolvimento da técnica, em todos os sentidos. Eu, por exemplo, fui operado da coluna pelas mãos maviosas do Dr. Geraldo Sá Carneiro – o Dr. Geraldinho – e duas hastes de titânio foram postas em minhas costas e eu estou andando e bulindo da melhor forma. Hei de comemorar os 10 anos de operado a 4 de maio!

É! A expectativa de vida aumentou! Gente como eu já poderia ter morrido, se a técnica não tivesse alcançado o ponto que alcançou. Os exames estão cada vez mais sofisticados; as tomografias e as ressonâncias têm acesso a tudo e mais um pouco. A Tomografia por Emissão de Pósitrons (o Pet Scan) revolucionou a oncologia e hoje se pode muito bem, não apenas diagnosticar, como também fazer o estadiamento do tumor. Os meus cadernos do último ano de medicina não servem mais pra nada, estão defasados, desatualizados. Nada se aplica mais!

Imagine o leitor como ficará um doente do estômago hoje, depois da invenção da endoscopia. Não fará mais a radiografia do órgão, uma seriografia, como se dizia antes. E ninguém terá mais o trabalho de identificar uma úlcera a partir da imagem de uma chama de vela. Nem vela se usa mais! E os stents cardíacos, que permitem uma sobrevida que não se tinha no passado, mesmo com as pontes?

terça-feira, 14 de outubro de 2014

Perpétuas Lembranças

Quando o sol vai raiando no horizonte, em dias assim, de nuvens nos céus e chuva no chão, por aqui já me alevanto e sendo um domingo, como hoje, depois da leitura dos jornais, tenho tempo para os meus sonhos. Vejo no monitor a pureza virginal do editor de textos e enxergo n’alma os meus sentimentos e as minhas saudades. Descortino os anos e as décadas que se foram, encantados nas brumas das lembranças e vou preenchendo este vazio com vocábulos e frases que se juntam e se abraçam quase, para exprimir de meu imaginário os devaneios.
Os velhos de minha infância morreram todos, carregaram com eles os afetos com que me tratavam e não deixaram o derradeiro afago. A minha avó paterna, Beatriz de prenome, gorda e matrona, escondia as peraltices com que preenchia o meu tempo de menino. A tia velha, Deolinda, nascida na noite de Natal, zangava-se quando se dizia que tinha a idade de Cristo. E a tia mais nova, viúva e mártir das imolações de um filho deficiente, não concordava com certos e fortuitos amores domésticos, mas nunca denunciou as cenas que testemunhara.
O meu avô, com o seu cabelo cor de prata, levava açúcar-cande nas manhãs de domingo, prometia o pavão dourado a quem raspasse o prato, mas nunca trouxe essa ave imaginária. E a minha outra avó, Laurinda, como se chamava, não teve mais tempo de me oferecer um retrato de meu bisavô, de quem tenho a sobrancelha, dizia. Agora, o denso traço negro de minha fronte esvaneceu, perdeu a cor e o viço, nada mais representa de genético ou de hereditário. Os meus tios e as minhas tias se despediram da vida, em maioria e estão nas distâncias infinitas, na outra dimensão, então.
E o meu pai, que me viu nascer e crescer, que assistiu o meu desenvolvimento pessoal, também se encantou, foi morar nos confins eternos. Quase posso dizer que se despediu de mim, naquela noite derradeira de tanta insônia e tão sem graça mais. Tinha o que me dizer, ainda, mas deixou para um vespertino encontro, de cuja impossibilidade não foi culpado, entregou-se antes. Nada posso imaginar das suas intenções no aprazado diálogo pra logo mais, à tarde, senão algum comentário sobre as minhas crônicas neste JC, como costumava fazer. Não use esse advérbio ou esse adjetivo, poderia ser! Quem sabe?
Desapareceram, da mesma forma, as pessoas com as quais convivi em criança, os amigos de meu pai. Todos ou quase todos! Sylvio Rabelo e seu irmão, Dácio de prenome, Mário Melo e Gilberto Osório, o mestre Ascenso Ferreira, um grandalhão, com um chapéu de abas largas e um vozeirão de arrepiar, com medo das caiporas: “...Ali mora o pai da mata/Ali é a casa das caiporas...”. O padre Sales, camareiro papal, celebrante agoniado de quinze minutos, somente, sentado no alpendre de casa a discutir e debater o embate eleitoral na faculdade, tornando-se diretor por dois mandatos, orgulhoso do cargo de Deão.
E os mais simples convivas, aqueles das ruas e dos becos, dos labirintos da vila da tecelagem, em cujas ruelas experimentei o lúdico desse exercício do existir? Penso que se foram, em grande parte, viajaram, definitivamente, para as moradas eternas! Onde estará o cantor das calçadas de meu bairro, Sabará por apelido, que entoava em voz sonante: “Tornei-me um ébrio/E na bebida busco encontrar/Aquela ingrata...”? Seria essa a razão de suas incursões etílicas? A perda de um amor? Chorava assim a ingratidão que sofrera? Talvez sim ou talvez não!
O seu Pedro da banana cortou uma perna, do homem que vendia laranjas num saco de açúcar, não tenho notícias, tampouco do mascate, com a sua carroça de um azul desbotado, preenchida por gavetas, nas quais trazia a linha de cozer e o novelo do croché de minha avó. Do homem da galinha, a cavalo, com dois caçoas repletos dessas penosas sabáticas, sequer imagino o destino. E o vendedor de amendoim, com a farinha saborosa embalada em cônico invólucro de papel de embrulho? Não sei! Essa gente fez parte de minha vida e desapareceu por encanto!
Mudaram os atores e trocaram os cenários! Vou fazendo a minha parte, somente!

(*) Um texto muito antigo, um tanto nostálgico, lembrando das pessoas com as quais convivi e que se transferiram para as distâncias eternas. Confesso que sou favorável àquele escritor - creio que Origenes Lessa - que insiste em recomendar como pano de fundo da escrita o sofrimento. Já escrevi bem, quando sofria, agora que não tenho sofrido mais está difícil criar. É o que sinto!
 

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Globalização e cultura

Na perspectiva das mudanças todas que o mundo experimenta e dos danos que já está trazendo no campo social, há o risco que poderá trazer à cultura e às artes. Imagine o leitor as consequências da veiculação da produção intelectual de países desenvolvidos no combalido Terceiro Mundo, tão desprovido, já, de recursos no campo do humanismo! Se as coisas partissem dos berços que forjaram a civilização e permitissem o conhecimento das obras clássicas, por exemplo, no campo da literatura e da música, como da pintura e da escultura, por certo, os ganhos estariam garantidos! Mas, se a importação cultural predominar, como se pode esperar, na ótica de países diferentes, novos, embora postos no patamar dos desenvolvidos, numa tentativa de difundir o que se chama de pop e outras denominações do inteiramente estilizado, vai ser o caos! Globalização, entretanto, não deve ser sinônimo de uniformização e não é preciso, pois, perder a identidade para partilhar da pós-modernidade!
As inúmeras antenas parabólicas no interior de Pernambuco representam, ao que parece, uma antecipação do processo de mundialização da cultura, uma uniformização nacional, já, em tudo não desejável, haja vista as diferenças significativas entre as regiões do Brasil. Ora, dia desses, em cidade do Agreste, distante três horas, se muito, do Recife, ouvi uma indagação a propósito da Capital e à minha resposta, o interlocutor de ocasião desculpou-se: "Não assisto mais os canais locais!". E não se assiste, mesmo! Antes, o receptor das casas interioranas e do nosso mais do que belo arquipélago de Fernando de Noronha captam sinais de outros estados, quando não transmissões alienígenas! Dessa forma; podem manter contacto com o resto do mundo e ignoram os acontecimentos próximos! Lembra um pouco os tempos do antes, de uma censura velada às emissoras de rádio e de televisão, quando se procurava a sintonia estrangeira para se ter o noticiário negado na prática. A diferença do hoje é o estado democrático em que se vive, se pensa e se escreve, até! E mais fácil, então, admirar o samba e a música da Bahia ou o Boi do Pará, que o Frevo de Bloco!
Certas manifestações folclóricas, mesmo que herdadas da colonização, como as quadrilhas de São João, que encantaram a vida de tantos e serviram para o encontro de muitos, surgem na telinha da forma mais estilizada possível, com ritmos diferentes e roupas adaptadas ao tempo da metamorfose! O Carnaval fora de época, também, chega como se fosse a indústria da baixa estação, enche a Av. Boa Viagem de trios elétricos, que tocam, da maneira mais ensurdecedora que já se viu no Recife, acima de todos os decibéis suportáveis, músicas que fazem sucesso em Salvador. Há, por trás de tudo isso, um esquema comercial de fazer inveja a qualquer negociante da cidade, com a indumentária nomeada por estranho vocábulo - "Abada" -, sendo vendida a prestação e representando a senha para a entrada no respectivo trio. E a rapaziada compra, se compromete e paga, depois desfila ali, entre os seguidores do "Recifolia". O "Axé Music", que mistura um pouco de tudo, faz sucesso, pois, na capital do forró e desbanca a sonoridade melodiosa de Nelson e de Capiba, pelo menos por uns dias!
Ora, nestas paragens em que pontificou e pontifica gente da melhor estirpe, entre escritores e poetas, os quais cantaram a beleza dos rios e a grandiosidade das terras, além dos amores e das dores, em prosa e verso ou nestas paragens de compositores e de pintores, de produtores da sétima arte, premiados, sempre, não se pode apagar a chama do inteiramente humano! É necessário, sobretudo, estimular a criação, fazer como, recentemente, fizeram a Prefeitura da Cidade do Recife, a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e o Colégio Contato, de cuja junção de forças nasceram três prêmios, também, para o cinema pernambucano. Ou é preciso fazer como acaba de propor a Companhia Editora de Pernambuco à UFPE, a reedição de um volume no qual estão as principais riquezas do folclore, à semelhança da iniciativa anterior, do Voz Poética, um conjunto no qual estão Ascenso e Manuel Bandeira, Cardozo e Mauro Mota, Gilberto e João Cabral, além de Olegário Mariano, declamando amores. E os cantadores populares, repentistas do mote, que nas feiras improvisavam o verso? Estão sucumbindo à força das novidades do tempo!
É necessário, também, resgatar as velhas estórias contadas pelas nossas avós, substituídas - que pena! -, pelos desenhos animados e as cantigas de ninar, que embalavam as crianças de colo, no entoar de loas assim: "Geraldo vá dormir/Que eu tenho o que fazer/Vou lavar/Vou engomar/A roupinha pra você/Esse menino não é meu/Me deram pra eu criar/Obrigação de quem cria/É menino acalentar".

Um texto de meu recente livro - Textos esparsos, crônicas dispersas -, escrito há muitos anos e guardado por minha mãe, que cuidou em arquivar tudo, dando-me de presente uma quantidade grande de crônicas e de artigos, os quais pude reunir em volume que lancei faz menos de um mês.