quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

Carreta Truncada

Bebia tudo o que lhe vinha às mãos, bastava que fosse álcool e lhe curasse dos tremores matinais. Recebia o salário e na primeira bodega entregava-se à aguardente que inebria e embriaga. Zezinho ou Zé de Tonha, como o trato aqui, preservando-lhe o apelido, terminava deitado no chão imundo, seboso com as pisadas e molhado das águas insalubres do esgotamento da pia, ressonando e quase nunca sonhando. Roubavam-lhe as roupas, deixando-o na intimidade da cueca surrada e manchada do piso sem jeito; sem jeito e sem limpeza. Quando acordava se arrumava ninguém sabe como e partia pra casa, ia ver a filharada e a mulher magrela, desnutrida e desdentada. Zé de Tonha a rejeitava quando sóbrio, mas caia de amores se ébrio e trôpego. E foi dele que Edvaldo, motorista do carro oficial, me contou o que reproduzo aqui, fiel à história e sem carregar nas tintas.

Belo dia o nosso personagem decide-se pela abstenção e nisso a assistente social teve papel fundamental. Recebeu os parcos trocados no banco em frente e foi com a profissional abastecer a casa. Comprou de um tudo, verduras e frutas, feijão e arroz, carne fatiada em bifes e outras formas de apresentar o produto bovino. Ainda deu para encher-se de camisas e de calças, tudo novo em folha, arrumado direitinho na geladeira ou no guarda-roupa de casa. Assim, dera um bom destino ao 13° salário. Reapareceu para trabalhar, contando a grande novidade. Estava apartado da magrela, desnutrida e desdentada, morrendo de amores por Zuleide, verbalizando para a moçada: “Só vocês vendo! Uma carreta truncada!”. Que vissem a novata, sentenciou para todos, amigos de fiar conversa nos intervalos do batente. Ligou pelo "orelhão" chamando a neófita de seus afagos e de seus afetos e a turma aguardou.

Durou uma hora, pouco mais ou pouco menos, pra chegar a mulher, mas num momento qualquer o nosso protagonista verbalizou, em alto e bom som: “Lá vem a carreta truncada! Nunca tive uma mulher dessa!”. Zezinho estava entre orgulhoso e ciumento com a sua mais recente conquista. A criatura se achegou, entrando nos diálogos, falando pelos cotovelos e explicando seus dotes de dona de casa, do fogão ao tanque, da arrumação à arte de passar, sem tocar nos predicados demonstrados no leito nupcial, já decantados em prosa e verso nas exposições malucas do Zé abstêmio. Deu o braço e retornou, tomou o caminho de casa. De longe, quem olhasse imaginava um mosquito arrastado pela carreta enorme, truncada, rodando com 12 pneus, se pouco. Desfilava rua a fora, até o ponto de ônibus e depois sumiu no horizonte das paixões inusitadas.

Uma quinzena se passou com o homem de férias, descansando das agruras todas, porém o grupo, em apoio ao colega, resolveu visitá-lo e tomaram o sentido de Casa Amarela. Não havia mais nada no refrigerador, encantaram-se os alimentos adquiridos para um mês e as roupas bem guardadas se foram, também, na onda do bota fora. “Zezinho, o que houve por aqui?” Foi o que indagaram! E ele, quase tomado por uma gagueira de ocasião, a princípio justificou a destinação: a panela doméstica. Com a insistência do pessoal, abriu a boca: “Foi a carreta! Nada tinha em casa dela e levou a comida para fazer almoço! Eu autorizei!” Não se teve dúvidas, era preciso chamar a mulher, convocá-la a uma explicação mais lógica das coisas. E ela chegou logo, muito rápido, vestida com trajes modestos, mas com um decote profundo e com a cintura apertada de quem já foi bonita e bem feita na vida. Não era feia e também não era bonita, nem gorda e nem magra, mulher quartuda, protundente, qual as antigas madonas dos anos 60.

Ouviu a explanação toda, da assistente social e dos amigos, fez uns salamaleques pra lá e pra cá, ajeitou o cabelo como pôde e se viu no espelho, tomando, então, a palavra naquela reunião diferente: “É! Levei! Precisei da comida, nada tinha pra encher o bucho vazio! Mas, não vou deixar este pobre sem o almoço e sem a janta, vou trazer aqui!” Aprovou-se a seguir a exigência de assistir à refeição do penitente em causa e lá se foi outra vez a carreta, retornando com o prato pronto e quente. Mas, Zezinho voltou a beber, a receber o salário e a gastar na barraca da esquina, a carreta tomou seu rumo e dela ninguém sabe, ninguém viu.

Uma história, apenas, pra relevar o cotidiano difícil.

(*) Eis um relato diferente, cheio de conflitos e de tramóias, de um homem solitário que viveu e vive dependente da aguardente. Verídico, mudam os prenomes, apenas, em respeito aos personagens.

Ofereço a história a Barbosa, funcionário do NUSP/UFPE: o meu lugar. Barbosa encantou-se, mudou-se para a outra dimensão da vida e agora vela por todos com os quais conviveu. Ia ler esse Blog de hoje. Gostava de fiar conversa, de ouvir histórias e de cantarolar românticas músicas de seus outroras na serra de Ororubá.