segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Convívios e Convivências

Em dias de verão, como esses de agora, quando a tarde se encorpava e a noite quase se anunciava, a minha avó paterna pedia que levasse as cadeiras do terraço – pesadas cadeiras de madeira – para frente de casa e ali se sentava para um deforete, dizia. Passava um e passava outro e a avó no alto de seus 76 ou 78 anos fiava uma conversa a mais ou pelo menos respondia a um cumprimento atencioso de uns e de outros. “Boa-tarde Dona Beatriz!" Dizia o enfermeiro da fábrica voltando do trabalho! E Dona Mimi, que rezava a gente toda do lugar, sentava junto dela e combinava voltar no outro dia, quando tivesse o que fazer com um dos netos. Trazia um galho de mastruz que deveria murchar se o “olhado” se afastasse. Ninguém atentava, nem ela, que a planta naturalmente sucumbe fora do caule. Ficava por lá até que desse a hora da ceia, quando voltava e no canto da mesa, onde se acostumara a sentar, tomava a sopa e o café com bolachas americanas cobertas por manteiga.
Hoje não! As moradias são todas emparelhadas, umas em cima das outras e prédios enormes acolhem 50 famílias no mínimo. Comigo é assim! Dois apartamentos por andar e 25 andares. Se for fazer a conta dos habitantes todos, o resultado há de ultrapassar 150 pessoas. É impossível decorar os nomes e mesmo os que se aproximam em função de gostos semelhantes, mal frequentam a casa do vizinho. Convites se manda em função da educação, para aqueles com os quais se tem uma ligação maior, mas não há compromisso de um com o outro. Não há mais a solidariedade de outrora. No passado a safra de manga era dividida com os vizinhos de rua, as carambolas excedentes eram dadas de bom grado à família da casa ao lado. O bolo, o pé de moleque ou o pão de ló, dos antigos exercícios do compartilhar, hoje, quando muito, cheiram no fogão alheio. Até no elevador os cumprimentos são distantes: "Bom dia!" "Como está passando?" "Está melhor!".

Quando comecei a frequentar casa de minha sogra, sentia o quanto os moradores se conheciam e conviviam. As festas de São João eram animadas e as fogueiras serviam aos que desejavam fazer a travessia das brasas, qualquer que fosse, porque cabia ao dono da casa evitar pregos e outros artefatos que pudessem queimar quem se arvorasse nessa empreitada. A “Missa do Galo”, lá e cá, enchia as igrejas, toda a constelação parental comparecia, desde as avós até a menor das crianças. Era uma festa que se podia compartilhar realmente. E no Ano Novo, como acontecia em minha rua, as famílias iam de casa em casa desejando felicidades no provir das coisas. Os meninos cuidavam em bater nos antigos postes de ferro e faziam uma zoada do cão, mas saudavam assim o novo ano. Era o tempo do antes, no qual se permitia o convívio das pessoas, sem televisão e sem shoppings, sem computador e sem Internet. O telefone dava conta dos amigos que ligavam e desejavam “boas entradas”. Não esqueço um amigo de meu pai, que telefonava a cada ano: José Césio Regueira Costa. Dele ninguém fala! Dele ninguém lembra! Hoje não, um ano termina e outro nasce, quando não se está dormindo, bebe-se até não poder mais na casa de um parente.

Desapareceram os convívios e as convivências.


  

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Boca de Caçapa

              Havia em minha rua da adolescência, que foi a mesma rua dos começos de minha juventude, uma menina de seus 13 ou 14 anos, no tempo em que eu também tinha a mesma idade. Era ela quem me pedia para consertar a sua bicicleta. Eu não sabia que consertava bicicleta, mas descobri que a paixão leva a isso, a se reparar o que não se sabe. No mais das vezes eram pequenos defeitos; defeitos que a minha idade permitia superar. A corrente que saltava ou o pneu que estourava, furava, melhor dizendo. Ah, nisso eu era craque. Sempre tinha em casa um conjunto que reunia a cola para o pneu e o reparo que fechava o orifício em que o ar vazara.
Terminei namorando com ela e numa tarde que já vai muito distante na contabilidade dos anos, resolvi passar todo o tempo do mundo dando voltas com ela no quarteirão. Rodamos vezes e vezes naqueles passeios e no outro dia, na prova de história no colégio, pimba: tirei zero. Terminado o mês vieram as notas no boletim e o meu pai me convocou a uma conferência reservada. Fazia sempre isso, quando queria chamar a atenção de alguma coisa. Lá fui eu para o seu gabinete – a jaula – e não tive uma saída que prestasse à reclamação: “Como é que você, sabendo que eu sou professor de história, não se esforça no colégio e tira nessa matéria nota zero?” Não tinha desculpas a apresentar! De mais a mais, a minha avó fizera queixa a meu pai, com o seu vocabulário peculiar: “Geraldo passou a tarde inteira de bicicleta com uma moleca de rua, de olhos pintados!” Não era moleca de rua, ela apenas pintava os olhos com um traço escuro! Coisa nova à época. Foi um desadoro!
Por essas e por outras o meu pai não tinha muita esperança que eu desse pra gente. Digo isso, porque certa vez ouvi a conversa dele com uma irmã – a tia mais nova –, em que ele afirmava, em alto e bom som: “Não faço muita fé no mais velho!” E ela: “Veja! De onde não se espera é que se tem. Você vai ver que ele vai brilhar! Há de ser o melhor da prole!”. Eu não sei se brilhei ou se não brilhei, se fui o melhor ou se não fui, mas a verdade é que lembro dessa passagem toda vez que tenho um fato novo em minha vida: uma posse, uma medalha, um prêmio. Penso com meus botões – botões muito reflexivos – que se ele, o meu pai, estivesse por cá, estaria honrado com os meus feitos. Os meus feitos e os meus fatos! Mesmo que admirado, surpreso, pensando: “Aquele menino peralta, inquieto e dado a muitas namoradas, cortejando a mulherada toda da Boa Vista, é gente!”. 

E por falar em namoradas, vem à minha lembrança uma delas: Boca de Caçapa. Pode acreditar o leitor, foi a única de todas as musas que abracei sem um atrativo sequer. Feia que doía! Sem dentes! Do cabelo com um corte sem graça. Desengonçada, mal trajada e descuidada. Não sei porque cargas d’água fui namorar com essa suplicante e o pior, tinha ciúmes dela. Mas compensei com as outras: finas e bonitas.
Mas, a preocupação paterna era tão verdadeira, que aos 15 anos, na flor da idade, ouvi a recomendação: “Estude datilografia, pois se não conseguir emprego vai trabalhar no comércio!”. E eu sou formado e escrevo muito bem aqui nesse teclado do computador, em tudo igual ao de uma máquina de escrever.
 

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Outras reflexões e a mesma medalha

Tenho refletido a propósito de minha vida de médico: quanta coisa mudou nessas quase quatro décadas e meia. Quando sai da escola, formado e de anel no dedo, tratava-se úlcera gástrica ou duodenal com dieta láctea, isto é, com leite a cada hora. E o diagnóstico dessas afecções, sobretudo da segunda, era realizado por radiografia contrastada da parte alta do aparelho digestivo. Exigia-se do profissional divisar uma imagem em chama de vela e a partir daí estabelecer o tratamento. Era, francamente, um Deus nos acuda, para enxergar essa chama que aparecia depois que se esvaziava o estômago. Hoje não, a endoscopia chega até a intimidade gástrica e identifica, sem erro, a cratera ulcerosa. E o leite – ah o leite! – está contraindicado, porque embora neutralize a acidez, o faz de maneira momentânea, pois dentro de alguns minutos vem um rebote maior ainda.  
No hoje das coisas a ciência atingiu um desenvolvimento tão grande, mas tão grande, que se ainda tivesse por cá os meus cadernos, cujo resgate me faria feliz, de nada mais serviriam as notas reunidas em noites e noites de muito estudo, numa puxada de casa, feita por minha mãe e que serviu a mim e a outros colegas. Os livros, igualmente, desatualizaram-se e sofreram a metamorfose do nada ou se prestam apenas ao estudo do que foi o ontem dos dias. No ano em que nasci (1944), um autor que estudava a Mortalidade Infantil apontou dados alarmantes, isto é, que de cada 1000 nascidos vivos morriam acima de 400 bebês. Isso foi corrigido depois para dados que representavam a metade do registro. Muito alto ainda! Atualmente, como está em documento de 2009, Pernambuco teve 29,2 óbitos por 1000 nascidos vivos.  
No campo da imagem, então, a mudança foi radical. Já se falava em tomografia nos anos sessenta, mas somente para os pulmões e para o diagnóstico de certeza da tuberculose. Na atualidade não, serve para muita coisa e cascavilha o organismo inteiro. E a ressonância magnética, só falta mesmo falar, tal a penetração que tem na intimidade orgânica. Com contraste ou sem contraste.  O cérebro agora está exposto e só está faltando mesmo identificar os pensamentos. Saber quem gosta ou quem não gosta da pessoa. A ultrassonografia da mesma maneira: navega pelo corpo como se fosse um navio com rumo certo. Isso tem prolongado a vida e já se vai a 73,4 anos como média de vida do brasileiro. Claro que se chega a muito mais e se houver dinheiro para comprar remédios e pagar o plano de saúde, sinceramente, o penitente vai aos 80 sem dificuldades. No Japão isso é o habitual de toda gente. Eu vi por lá velhos cuidando de velhos, isto é mães centenárias sob a batuta de filhas com oitenta anos bem vividos. É o que estamos vendo!
Pois é, hoje à noite recebo a medalha São Lucas, a maior outorga das entidades médicas a seus integrantes. Acolho a comenda como um reconhecimento com que me distinguem, sabendo que mereço a condecoração por tudo que fiz e por tudo que ainda venho fazendo.    

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Rito de Passagem

Chego à Associação Médica de Pernambuco para tirar as fotografias que devem anteceder a entrega da medalha de São Lucas, com a qual hei de ser condecorado, a mais importante outorga que as entidades oferecem a um profissional da ciência de Hipócrates. Nem sei ainda o que isso significa para mim. Foram diversas as poses, umas em grupo, porque seremos três os agraciados e outras isoladas. O fotógrafo confere em seu visor quase mágico o semblante de cada um e novamente direciona o seu flash. Lembro do que dizia por aqui uma determinada jovem: “Doutor! Cada mergulho é um flash!” E é isso mesmo!
Sem que haja mergulho, sequer água!
É interessante! Fui a dezenas dessas solenidades, só que para prestigiar outros colegas assim escolhidos. Lembro até de algumas. Daquela em que o Prof. Salomão Kelner recebeu a comenda e falou sobre o santo, com tantos detalhes, que não se esperava pudesse se expressar um judeu. Sentia que aqueles agraciados quase que encerravam por ali a lida profissional. Era um reconhecimento pela dedicação de uma vida inteira doada à causa, mas assim também terminada. Dizia-se da proximidade da morte dos escolhidos, como se a sentença incluísse as palavras bíblicas: “Muitos são os chamados e poucos os escolhidos!”. Será que estou realmente encerrando uma faina de anos e anos, de décadas seguidas? Estou! Tenho que reconhecer!
Ontem quase não dormi, refletindo sobre isso. Como posso deixar uma profissão pela qual, posso dizer, dei a vida e entreguei minha saúde? Trago hoje o corpo vergando à força de tantas e tantas passagens que me tiraram outras noites de sono! Os meus cabelos estão da cor da prata, sinal do quanto sofri com aqueles que vieram buscar os meus socorros. É um mister bonito, mas extremamente sofrido, doloroso! Por isso, chega-se a um ponto em que é preciso parar e rever tudo que se fez no pretérito das coisas. Mas, não exatamente parar no sentido de assumir o ócio como vivência dos dias que chegam. Não, isso não! Hei   de fazer disso um rito de passagem, apenas. Deixo a prática de Esculápio e me volto ainda mais para a cultura.
É o que vou fazer! Afinal já não vinha exercendo há algum tempo! Vinha – isso sim! – me dedicando mais e mais ao humanismo, à escrita diuturna de ensaios e de crônicas; de ensaios que abordam o ontem das coisas e por isso mesmo pertencem à seara da história e de crônicas que expõem as minhas inquietações d’alma ou que mostram o lado bem humorado que tenho em meu dia a dia. Ainda bem que sempre fui assim! Foi possível ultrapassar momentos difíceis com essa forma de ser ou foi possível simular com os humores horas de horrores.
Tenho um livro por terminar; livro que faz uma retrospectiva de minha vida inteirinha, abordando todas as mudanças que assisti. Transformações vividas e experimentadas, modificações em tudo por tudo. Fui testemunha de verdadeira metamorfose do tudo e é sobre isso mesmo que hei de escrever e terminar o meu livro. 
Sem dúvida alguma tenho condições de por em prática o que aprendi com os meus mestres: "Não desistir nunca!" E não desistirei, enquanto vida tiver.

(*) Leitores amigos, estou aqui em Curitiba, a cidade sorriso. Tinha escrito essas reflexões no Recife ainda e daqui mesmo, às carreiras, as incluo no Blog, porque tenho um jantar em mais uma hora e não posso atrasar os outros, os meus colegas médicos escritores. Por isso, deixo de ilustrar o Blog, tarefa que me toma bom tempo. Desde já convido a todos para a solenidade de outorga da medalha São Lucas, no próximo dia 18 de outubro, às 20 horas. Comentários e outras intervenções neste espaço poderão ser adicionadas por cá mesmo ou para os e-mais pereira.gj@gmail.com e pereira@elogica.com.br  

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

O dia do meu aniversário

 
Enquanto no Velho Mundo estouravam bombas cada vez mais destruidoras, na então pacata cidade do Recife nascia um menino de bons hábitos, de boa família e de bons antecedentes, pelo menos no que toca ao rudimentar pré-natal que fizera a genitora. O Dr. Djair Brindeiro fora o parteiro, como se costumava dizer e a Maternidade Freitas Lins foi o lugar no qual se deu o procedimento médico. Corria o ano da graça de 1944 e o mês era o de outubro, sendo o dia justamente aquele em que se comemora a data de São Francisco de Assis, data também dos bichos e da ecologia: 4 de outubro. A 10 do mesmo mês e ano, na matriz da Soledade, o menino fora levado à pia batismal, sendo celebrante do ato de iniciação do catecúmeno no culto católico o Monsenhor Francisco Apolônio Jorge Sales e padrinhos do menino o seu avós maternos Bartolomeu Marques e Laurinda Rosa Marques.

O pai da criança orgulhava-se muito de sua mãe no dia do parto, dizendo que ela vestiu-se com um avental branco e esperou pelo nascimento, tendo a oportunidade de pegar nos braços o neto que aportava nesse mundo de Deus. E com essa avó o menino conviveu muitos anos de sua vida. Tinha 16 anos de idade quando ela se foi. A criança costumava dizer que fora criado com vó e que dessa criação, complementava, só pode dar um menino abestalhado ou um doido e que ele optara pela segunda condição e assim foi o resto da vida. Diziam os mais velhos que o menino fora amamentado no blackout, isto é na escuridão do tempo, porque para que o Recife não fosse bombardeado apagavam-se as luzes todas da cidade. Daí, complementam alguns a admiração do menino pelos seios femininos, pingentes do amor, como ainda hoje chama.

O genitor trabalhava no bairro portuário, em jornal que circulava ao tempo, com o nome de Folha da Manhã, só chegando em casa altas horas da noite. Aliás era comum que os jornalistas de batente voltassem assim tarde da noite, numa época sem Internet e sem outros recursos da modernidade. Era um homem de boa conversa e contava e recontava os fatos do dia. Um desses repito agora. Dizia que era mais de meia-noite e a zona do baixo meretrício fervilhava de gente, quando um padre passou, com sua batina preta, devidamente paramentado para atender a uma mulher que se ultimava numa pensão alegre. Passou, viu o amigo que caminhava de volta à casa e nada disse, simplesmente cumpriu o seu dever.

E o menino era eu. Hoje é o meu aniversário!