sábado, 26 de maio de 2007

Reitor da Universidade Livre

Noutros tempos, neste Recife dos rios e das pontes, quando a gente grã-fina e os remediados da sorte circulavam pelo centro comercial, pontificavam por lá, também, certos e determinados tipos mais do que peculiares, pois que mesmo sendo diferentes, engajavam-se, perfeitamente, na paisagem urbana. Alguns apresentavam nítidos sinais do desvario, mas outros não. Eram mais contidos ou eram menos exaltados. A verdade é que se tornaram personagens constantes do grande espetáculo do centro, com especialidade nos períodos de festas, de Natal, por exemplo, ou de Carnaval, perambulando nas calçadas e nos passeios da cidade. Hoje, não os vejo mais e ignoro de todos o destino. Compreendo, todavia, que não possam fazer o footing, como dantes se dizia, nos ambientes refrigerados de um shopping, para onde acorrem, agora, as elites, as bem estabelecidas e as demais, em franca debacle.

De todos, certamente, o Dono da Rua do Imperador parece ter sido o mais interessante, vestido a caráter, misturando peças de roupa das corporações militares e de outras instituições, desarmadas essas. Coberto de medalhas, de condecorações diversas ou de comendas variadas, orgulhava-se das honrarias todas, passando a mão no peito e acariciando cada uma daquelas circunferências de bronze. Muitas e muitas vezes, na Festa da Mocidade, pude fiar conversa com esse figurante inusitado das animadas noites, ali, no Parque 13 de Maio. Dizia-se integrante da cavalaria submarina e assumia no imaginário, mais do que fértil, a segurança do lugar, ignorando, por certo, a ação, firme e segura, de Marcha-Lenta, sargento da Rádio Patrulha destacado por lá, na ambiência da festa. Havia comprado a rua da qual se dizia dono e não vendia a ninguém, por dinheiro nenhum, justificava. E fazia muitíssimo bem. Cada qual que cultive a sua fantasia!

E Lolita? Quem não lembra? Com o andar afeminado e cheio de trejeitos, andava a cidade de ponta a ponta, se requebrando e cantando, muitas vezes, ou simplesmente cobrindo de pilhérias os incautos passantes, que coravam de tanta vergonha, com as espirituosas graças do homem que gostaria de ter nascido mulher e bem mulher. Mas, se o transeunte menos avisado cuidasse em reagir, apanhava pra valer, levando todos os socos do mundo e as pesadas todas, também, a que se arriscara. Foi preso uma centena de vezes e recolhido aos porões da Sorbone da Rua da Aurora, como chamava o nosso saudoso Paulo Malta a sede da Secretaria de Segurança, de onde, aliás, foi delegado e dedicado servidor. O próprio Paulo deve ter recolhido Lolita e posto em liberdade pela manhã, logo cedo, como costumava fazer, encerrando o plantão e liberando toda a gente detida na noite anterior, para o descontentamento, geral e irrestrito, de seus colegas da polícia.

Outro, mais recatado e nem por isso menos popular, era o Chá Preto e Pente, que vendia as folhas prontas para a infusão doméstica, suficientemente capazes de curarem os males da família inteira e da vizinhança, também. Lembro-me, ligeiramente, do homem de certa idade gritando o seu slogan: Chá Preto e Pente! É que misturava as coisas e as vendas, acrescentando o apetrecho apropriado ao pentear dos cabelos aos seus princípios medicinais da Botânica tupiniquim.

Interessante, contudo, era o Reitor da Universidade Livre, um homem negro, alto e gordo, que costumava andar de paletó e gravata, vestido à risca para a sua condição magnífica. De certa feita, tendo comparecido a uma reunião acadêmica e não incluído na mesa, zangou-se verdadeiramente, prometendo vingança com as ausências futuras. Nunca mais tomou assento nos encontros assim, da ciência e da cultura. Pregava a liberdade para aprender, simplesmente. E estava certo, embora complicado.

Finalmente, uma figura estranha, sorridente e falante, de cujo nome ou cognome não recordo, mas de cuja fisionomia tenho, ainda hoje, a imagem exata. Descobrira ou inventara, como afirmava, muita coisa. A caneta que nunca esvaziava, a cura das doenças venéreas e mais uma dezena de outras besteiras. Chegou a escrever aos institutos estrangeiros de pesquisa, dos quais recebia respostas encorajadoras. Mulheres, quase não havia neste capítulo dos tipos da cidade, senão uma: Soninha! Solteirona, sem convicção nenhuma, andava à caça, sempre, de um penitente, que fosse. Confesso o meu desespero com a paixão de Soninha, nos tempos em que trabalhava no Centro de Saúde Gouveia de Barros e era estudante. Mulher de todos os pudores, não insistiu nas investidas mais, depois que lhe disse de meus desejos em antecipar os amores. Disse-me horrores e sumiu. Nunca mais a vi no cenário urbano, andando rápida, como quem vai a um encontro qualquer, imaginário, infelizmente! Nada me custou trocar aqui o seu prenome, em respeito à vida e às fragilidades da criatura.

Deus olhe por todos!
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Folhas Secas

Li e reli a carta de uma senhora alemã de 79 anos à sua nora, pernambucana deste rincão e tirei dali lições que vou guardando para o meu doravante. Diz a missivista que vive o outono da existência, sentindo a lentidão a lhe tomar o todo, pouco a pouco, no pensar sobretudo. Mas, recomenda, com sabedoria, à jovem nora que guarde os domingos para o Criador ou os reserve à família. E conta que em seus passeios aos bosques germânicos, vez ou outra, recolhe uma folha solta ao vento, largada ao léu. Nota que é seca, amarelada, embora traga sempre pequenas manchas verdes, as quais desaparecem depois de guardada por entre as páginas de um livro qualquer. A dona Ângela Efken, certamente, não imaginava que um cronista bissexto fosse tomar as reflexões de sua missiva e aproveitá-las em ocasião assim, de recolhimento d'alma e meditação do espírito, num domingo qualquer de tropicalidade aflorando. Uma reconciliação com o sentimento, então!

Eis a plenitude da idade, o ápice da experiência existencial! Foram anos e mais anos contados em décadas, reunindo vivências e convivências, convívios afinal sintetizados assim, num filosofar posso dizer doméstico, a sagrada forma de se apontar veredas a serem seguidas, caminhos a percorrer e estradas a passar. E é nesse outono ou nesse ocaso e nunca por acaso, que o conhecimento do dia-a-dia, das práticas de vida, deve ser transferido, mesmo que haja a lentidão no gesto ou mesmo que o ato e o fato de pensar exijam um desusado sacrifício. A maturidade tem isso, traz o dano e a debacle, o declínio, pois, mas promove a serenidade e a paz, permite que a reflexão conduza os destinos e inibe a pressa irrefletida, tão comum na juventude e uma constante, quase, na adolescência dos anos. E a dona Ângela Efken enaltece a família, a célula mater e recomenda Deus, que é tudo, a concórdia e a humildade, a harmonia e o sossego.

A lição maior, todavia, está nas folhas secas recolhidas ao léu, nas gélidas paragens germânicas, todas com manchas verdes e que murcham quando deixadas por entre páginas de livros. Toda gente, do começo ao fim dos tempos, preserva nos interiores marcas assim, do viço e da força, para se alevantar dos baques ou para superar obstáculos, pedras do caminho e percalços nos atalhos da vida. Há sempre um recomeço! Uma mudança, uma transformação, a metamorfose da criatura, numa readequação aos cenários da existência! Verdadeira reengenharia humana! Ninguém, todavia, deve se encolher e restar prisioneira, de si ou dos outros, sob o risco de murchar, de perder o brilho e a cor, de se tornar um nada, que a nada pode criar. Só a criatividade realiza o homem, porque o aproxima, mais e mais, do Criador, que fez a tudo e a todos, que estabeleceu as leis da natureza e sustenta o universo em sincrônicos movimentos de rotação e translação.

Viver é um exercício difícil, uma sucessão ou uma alternância de ganhos e de perdas que inquietam, profundamente, o ser. Há uma cruz reservada a cada um! Algumas mais pesadas, lenhos de madeira bruta, à semelhança de rochas, que tornam a trajetória penosa e sofrida, que abrem incuráveis chagas! Outras, mais leves! A criatura, porém, enfrenta tudo isso, vai contornando momentos e dando a volta em minutos, desespera-se e chora o pranto sentido, rasga-se em lágrimas e parece sucumbir. Sente-se, por vezes, um palhaço no picadeiro da vida, arremedando humores que não tem e achando graça no nada do nada! Reconhece, afinal, as dificuldades da hora e se ergue! Há, sempre, um sorriso guardado, uma expressão de afeto reservada e um afago emergente! Aos que foram melhor aquinhoados e cuja aflição é menor, que não cumpriram a paixão e a morte, cabe compreender, entender a inquietude alheia, sem exigências, pois.

O verde da esperança há de vencer a palidez amarelada dos fracassos estabelecidos e das ruínas sentidas, afastando as ameaças do cinza de todas as derrotas e do preto de outras desgraças funestas.

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segunda-feira, 21 de maio de 2007

Águas de Aldeia

A velocidade do tempo agora é diferente, as horas voam e os dias correm. A semana começa e termina numa rapidez impressionante. Levanto da cama, faço uma refeição ligeira e sigo às pressas para a hidroginástica, mergulho na piscina e exercito o corpo em manobras que interessam à musculatura toda. Volto para casa e me arrumo, saio outra vez, trabalho aqui e ali, lugares com salários e outros gratuitos e voluntários. Depois do almoço, o descanso, à tarde as horas de estudo, das leituras e das escritas. Assim, acabo de ter uma pesquisa publicada e enviei outra para uma revista. A participação no Conselho Estadual de Cultura estimula a dedicação à história da medicina e devo me voltar para escrever um livro sobre o médico de Nassau. Mas isso leva tempo. Que agitação! Um vaivém! Um ramerrame! Uma danação, diria o matuto se assim vivesse!

Surpreendi-me fazendo essas reflexões quando os feriados passaram e as minhas filhas com os meus genros se foram, levando a alegria das convivências parentais. Mal o sábado emergiu decretando o feriadão, já a terça-feira amanhecia trazendo a certeza das vésperas do retorno às atividades laborais. Olhei para cada uma e três filmes se sucederam no meu imaginário, do nascimento aos dias de hoje, da primeira e da segunda, ambas casadas, da terceira também, próxima como está dessa adoção da vida a dois, para cumprir o desiderato bíblico: “Crescei e multiplicai.” Tenho certeza que fiz como o condor: empurrei a cada uma para o primeiro vôo. Uma se vai para Madri, a segunda para o Ceará e a caçula para as Alagoas, parece. Ninguém imagina o que será de um filho aos dez anos de idade! E é isso mesmo! Mas há de se ter coragem para sacudir o filhote e fazê-lo voar!

Estou de volta à sacralidade do condomínio Bosque das Águas de Aldeia, onde agora posso reunir com mais conforto a família inteira. Aqui ouço o trinar madrugador do canário-da-terra, com direito ao corruchiar dos amores externando paixões. Canários abarrancados, como dizia ao mestre Francisco Brennand dia desses, mestre das artes e admirador da beleza dos pássaros. Sento no alpendre de casa e vejo a ventania estimulando o balanço sincrônico das folhas, assisto o saltitar do sabiá-gongá e o cantar melodioso da sabiá-branca. Por cá estão outros também, gente do porte de um Aldo Paes Barreto, que pontifica nos comentários sobre economia ou está um Paulo Caldas, da Bagaço e da Rua dos Arcos, cronista quase bissexto. A cada um posso encontrar, domingo sim e domingo não, na galinha à cabidela que um outro Paulo vem servir.
Vez ou outra coincide avistar na estrada Geraldo Freire na caminhada diária. De nada serve buzinar. Paulo Jardel, raramente o vejo, comprando frutas certa vez ou em sua casa numa visita, quando pude admirar uma coleção de quadros de pintores de Pernambuco. Coleção muito parecida à que deixou meu pai na sala de casa. Mas, sentado à ceia sempre está Alfredo, que faz o seu comércio na Ceasa e curte a paz dos anjos por aqui. Há pouco me comunicou, quase oficialmente, as negociações de Paulo Caldas para trazer Jessier Quirino a esses bosques paridos das intimidades hídricas. Renato Pina anda pra lá e pra cá, mas continua pegado com os começos da Faculdade de Medicina. Gilliat Falbo faz meses não o vejo por cá e Mozart – reitor –, de igual forma. Toda essa gente está em meus entornos a cada final de semana. Até Vizeu vai chegando por aqui! Que seja bem-vindo!

No fim do dia que o trabalhador deveria comemorar, a televisão mostrou os estragos da chuva e o computador expôs novas denúncias de roubo e de fraude. Voltei à realidade das coisas. Nada mudou! Nada muda!
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domingo, 13 de maio de 2007

Tampa de Chaleira

Nos meus inícios na Faculdade de Medicina, na fase em que estudava o esqueleto humano, colega meu dos bancos acadêmicos, visto distraidamente de olhos fechados passando a mão, levemente, numa tíbia apoiada entre o seu próprio queixo e à mesa de dissecação, não se livrou do cognome para o resto da vida: Chupa Osso. Na realidade, fazia ali, daquela forma e daquele jeito, o necessário exercício do aprendizado dos segredos da anatomia, percorrendo com o tato as saliências e as reentrâncias ou identificando orifícios por onde emergiram ou imergiram nervos, artérias e veias. Afinal, sabia da importância dessas bases morfológicas para o mister hipocrático e não podia descuidar dos esforços paternos, com os quais se sustentava, oriundo que era dos contrafortes da Borborema. Muitos anos depois, em congresso importante, outro colega me indaga: “Como é o nome, mesmo, de Chupa Osso?” Não podia, com certeza, tratar o companheiro daqueles anos pelo apelido em ambiente assim, de ciência e de pesquisa. E não o tratou, porque do prenome, pelo menos, eu sabia.

Os apelidos foram, realmente, a tônica daqueles convívios. Por qualquer motivo que fosse surgia um cognome a mais e de pronto a turma toda – 165 alunos – adotava essa imposição de um batismo improvisado e até desavisado. Fosse rapaz ou fosse moça, dado a bincadeiras ou sisudo na forma da lei, cada qual carregava um e ainda hoje, nas reuniões de aniversário dos anos de formado assina-se uma lista, em tudo parecida com a do passado e de quebra se acrescenta o nome dessas eras. Alguns, todavia, são de todo impublicáveis, mas outros, francamente, despregam as bandeiras, socializando o riso. Como esquecer do nosso Fofa, do Defunto ou do Gia, do Velho e de Bico de Ouro, conterrâneos esses dois, amigos até na morte? E a morte levou Cachorrão e carregou, do mesmo jeito, o caríssimo Timbu. A outros levou, também, roubando, de todos nós a chance desses convívios. Ou ainda, como não lembrar de Todo Feio, virado hoje e muito bem, num poeta de boa rima, prosador dos melhores? Esquecer de Mongrô é atentar contra a paz, a serenidade e os bons costumes. Pior do velho Barney? E o Pluto, vejam só?

O maior de todos os cognomes dessa turma, na emergência já dos quarenta anos de formada, não poderia ser outro, senão o de Tampa de Chaleira. Ora que o homem, chovesse ou fizesse sol, estivesse na sala de aula ou nos laboratórios, nas ruas do Recife ou nos anfiteatros de anatomia, suava feito um desadorado. Molhava a camisa em grandes rodas e chegava até a umedecer o pano das calças, dizia! Certa vez, o velho Tampa, chegando a um representante farmacêutico, acompanhando um périplo de estudantes, numa romaria em busca de amostras, sem saber que remédio pedir, perguntou ao colega mais próximo o nome de um produto qualquer. E o companheiro, irreverente como era, não titubeou, lembrou-se da recepcionista, mulher quarentona e viçosa, de ancas largas e busto protundente, com prenome diferente e recomendou que pedisse Fulana. O Tampa, na inocência do gesto, ainda insistiu mais, indagando se pedia em comprimidos ou em pó, em xarope ou injetável. Quase apanha da figura! Queria de qualquer forma aquela farmacêutica fórmula, fosse como fosse, e não entendeu a mulher, que raivosa e impiedosa, sustentando-lhe pela breca, perguntava-lhe, em voz alta: “Como se chama a sua mãe?” Guardei o necessário sigilo das relações entre o apelido e o nome. Não vou, agora, apontar colegas que na prática do dia-a-dia são expoentes da ciência, pelo cognome, então. E tampouco dizer o meu próprio, escrito aí por cima. Guardei também para mim, apenas, os demais apelidos, aqueles atribuídos às moças, por hesitação da consciência. Mas desses, pode crer o leitor, há alguns que são deliciosos, simplesmente.
E por aí vai.
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quinta-feira, 10 de maio de 2007

Amanaques e Boletins

Há preciosidades que não podem ser desprezadas, porque são resquícios da história, transmitem o que se viveu. Assim tem sido com alguns dos objetos das feiras de antiguidades. As canetas Compactor, por exemplo, tão em moda na década de cinqüenta ou aquela da pena fininha: a Parker51. Uma jóia quase, para presentear os filhos quando já matriculados no Curso Científico ou no Clássico. As louças da mesma forma, evocam gerações. Sem falar nos móveis, em cristaleiras e petisqueiras ou cômodas e penteadeiras, em desuso hoje nos apartamentos pequenos e contidos. Os lustres de cristal, a deixarem pendentes reluzentes pingentes, nos quais os raios de sol dançavam o balé das horas: pra lá e pra cá! E os espelhos grandes e brilhantes, a refletirem a infância e depois a adolescência?

Recebi do Dr. João Veiga um raro presente. Um Almanaque do Biotônico Fontoura, publicado em 1954, com o furinho e o cordão com o qual certamente foi pendurado na cozinha de uma casa qualquer pras bandas do Sertão, de onde veio esta criatura: médico de sensibilidade à flor da pele. Colecionador dos nunca ultrapassados discos de vinil, que rodaram nas vitrolas o jogo das sedutoras aproximações humanas. Secções as mais diversas – no almanaque –, desde aquelas da cultura às do bom humor, com inocentes piadas, passando pelo calendário com os santos do dia e a lavoura do mês, recomendando o plantio e sugerindo a colheita. Na brochura podiam os ancestrais do agora adquirir o conhecimento vigente e se orientarem no tempo e nas coisas. Que beleza!

Fiz a leitura de um fôlego só, da primeira à última página, sem pestanejar. Viajei no tempo, voltei aos anos das calças curtas e lembrei da farmácia na Avenida Visconde de Suassuna, onde pontificava o Sr. Belmiro, homem de poucas palavras e de mão pesada, espetando a agulha afiada da velha seringa de vidro, bem esterilizada, por certo. Injeções de Bismuto ou de Penicilina, contanto que os meninos não se queixassem da garganta doendo ou das amídalas inchadas. Quando foi embora, trocando a Boa Vista pela Bomba do Hemetério, assumiu a missão o Sr. Domingos, figurante, por anos a fio, dos cenários da meninice, enorme na estatura, mas doce no trato. Funcionário da antiga fábrica TSAP passava às onze para o almoço, hora de ser convocado e de logo picar o inquieto doente.

Fui à estante para guardar o Almanaque do Biotônico Fontoura em boa companhia, junto ao Boletim da Cidade e do Porto do Recife, uma generosa lembrança de Paulo Brusky, mais um colecionador de raridades e cuidei em novamente folhear a brochura. Publicação que data de 1945, quando tinha um ano de idade somente e a guerra urrava os estertores que antecedem o armistício. Periódico mimeografado – ninguém sabe mais o que é isso! –, editado pelo esforço de Césio Regueira Costa, Diretor do Departamento de Documentação e Cultura. Personagem de outros cenários da juventude, das visitas à repartição da cidade, onde se tinha à disposição um estúdio para ouvir os melhores discos da época. E o meu amigo Zé Biriba – onde estará ele? – não deixava de freqüentar!

Uma preciosidade, pelo que traz de conteúdo - o Boletim! Um dos artigos transcreve o depoimento de Vauthier sobre o Recife. Que lindo! E o engenheiro francês prestou atenção a tudo, às casas e às ruas, como seria de se esperar, mas às mulheres da mesma forma, das quais gostou e não gostou. E lá está Silvino Lopes, a quem conheci na Redação da Folha da Manhã, jornal do qual o meu pai tirou o seu e o meu sustento. A poesia do velho Ascenso Ferreira foi dissecada no que tem de popular. Antigo poeta do chapelão, que muitas vezes bateu em minha casa e foi por mim recebido.

Para terminar essa caminhada das saudades, ligou João Trindade, companheiro de jornadas no campo de futebol do Deputado das Vovozinhas: Alcides Teixeira. Mas, não falou do jogo de botão e tampouco das peripécias da época! Que pena! Vez ou outra liga Moisés, de outras histórias e de outras pendengas, autor de um cognome estranho para designar umas moças imensas de gordas: albacoras!

Com tanta emoção assim, só redigindo sob os acordes maviosos de Altemar Dutra evocando o velho, mesmo que o computador trave e reclame que as nostalgias melhor estariam no teclado da máquina de escrever! É verdade!
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sábado, 5 de maio de 2007

Consertador de Panelas

Escrevi uma crônica e publiquei neste espaço virtual intitulada “Macaxeira Rosa”, fazendo um comentário a propósito de antigos vendedores de rua da cidade, desaparecidos, em maioria, nesses tempos de globalização e de mundialização do tudo e de todos; crônica que obteve junto ao leitor uma generosa repercussão. Recebi algumas mensagens pelo resgate de figuras típicas da cidade provinciana, como era o Recife em décadas passadas. Foram muitas as lembranças a propósito de personagens urbanos, que os omiti, por falha mesmo da memória. Outros, também, pediram que continuasse a crônica, seguindo o tema e a tônica anterior, para complementar a lista. Faço isso, pois, em atenção àqueles que se ocupam de meus escritos e com isso me dão uma satisfação muito especial.

Como esquecer do consertador de panelas, que passava oferecendo os seus préstimos às custas do toque cadenciado e peculiar de um pequeno varão de ferro sobre uma frigideira usada? O simples escutar dessa musicalidade característica, produzia na cozinha um rebuliço e as peças de alumínio furadas eram, de logo, selecionadas e entregues ao especialista na arte do remendo. Voltavam novas, praticamente, trazendo no fundo o acréscimo de que precisavam e tinham a destinação habitual, a do cozimento, a depender, apenas, da receita do dia. Quando a galinha ia para a mesa, por certo que fora comprada ao homem que a cavalo trazia dois caçuás de penosas, um de cada lado. Cabia ao comprador sustentar a ave pelas asas e optar pela de peso maior, pois que o preço era unitário, não importando os quilogramas a mais, de um ou de outro exemplar.

Musicalidade mais apurada, entretanto, era a do amolador de tesouras, de facas, também, que usava um instrumento assemelhado a um realejo, do qual nasciam as notas da oferta. Um desses tinha parte do antebraço amputada, mas com um revestimento de couro, uma luva apropriada, manuseava a peça, cega por hora. Usava um carrinho que vinha empurrando e ao primeiro sinal de serviço a ser realizado, invertia a posição, alinhava a grande polia de borracha e com o pé num pedal artesanal girava o esmeril. Na realidade, terminava desgastando as lâminas a serem amoladas e em casa de toda a gente algumas das facas não serviam mais para atender às visitas ou aos mais cerimoniosos da família. Eram facas da cozinha. O vendedor de pirulitos, com uma tábua toda furada e os doces cônicos encaixados, usava um apito e ia passando adiante o seu produto de fabricação caseira que pregava nos dentes.

Já o homem das vassouras e dos espanadores era diferente, trazia um material de cabos coloridos e de pilosidade formando desenhos, para o chão da casa e a poeira dos móveis, além de vender, também, o vasculhador, que passado no teto sacudia as aranhas, afugentando-as das teias. Tinha um grito característico, chamando a atenção para a sua variedade em material assim, destinado à coleta do lixo doméstico, o grosso e o fino. Mas a oferta da lã de barriguda para travesseiro era cantada em versos sem muita rima: “Eu tenho lã de barriguda/Para travesseiro.” E como não havia a espuma de hoje, sintética e mais prática, conseguia boa freguesia nas ruas por onde passava. Era preciso encher esses apetrechos, que nos servem à cabeça, para um bom e reparador sono, a intervalos de tempo certos.

O peixe, do mesmo jeito, chegava à porta de casa, vinha em dois balaios, os quais, sustentados por cordas à ponta de um suporte de madeira carregado às costas, pendiam livres, quase, balançando, pra lá e pra cá, à medida que o vendedor andava pelas ruas e oferecia o produto gritando. Alguns desses homens do peixe faziam verdadeiros malabarismos com os balaios. Paravam, então, e apresentavam as espécies e as espécimes de que dispunham, utilizando-se depois de uma tábua para preparar as postas, tudo segundo as preferências do freguês. Peixe fresco, ao tempo, sem a ação, às vezes deletéria, do gelo que da carne branca rouba o sabor. Com os anos, apareceram os frigoríficos e a albacora popularizou-se na mesa do recifense. Mas, o nome desse bicho dos mares era muito aplicado como apelido para as mulheres gordas, ricas em adiposidades.
E foi de Leda Alves a lembrança do vendedor de cambará: “Olha a bolinha de cambará/Dois pacotes é um vintém...” E do poeta Paulo Montezuma a saudade do acendedor de lampiões nas ruas do Recife, iluminando os passeios da gente faceira. Não esqueço, todavia, do acendedor das lâmpadas, já, nos velhos postes de meu bairro, ligando as chaves e alumiando o tempo.

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