quinta-feira, 10 de julho de 2008

Notícias das Cheias no Recife

Nos anos 70, em duas ocasiões diferentes, o Recife foi tomado pelas águas do rio Capibaribe, o cão sem plumas de João Cabral de Mello Neto. Já tivera uma experiência semelhante, em 1967, se a memória não me trai, estudante de medicina ainda e funcionário do Centro de Saúde Gouveia de Barros, quando fui destacado para trabalhar no Grupo Escolar Frei Caneca. Mas, formado e de anel no dedo foi diferente, porque assumi nos dois os casos responsabilidades bem maiores que aquelas dos tempos de acadêmico. Da primeira vez, fui designado para trabalhar no Jockey Club de Pernambuco, no bairro do Prado e na segunda, terminei me deslocando a Limoeiro. Mas, depois dessas ocorrências todas, ainda cumpri um treinamento de enchente, coisa que nunca imaginei pudesse existir e sob o comando de um major do exército, quando pensei que essas coisas fossem da alçada dos bombeiros. Mas, vamos aos fatos.
Com o Recife tomado de assalto pelo rio enfurecido, fui escalado, como já expliquei, para trabalhar no Jockey Club de Pernambuco, onde tantas vezes vi a minha avó materna apostar nos cavalos da sua preferência. Instalado e determinado, comecei a atender aos chamados flagelados da enchente. Nada ou quase nada ligado ao fenômeno da natureza, senão uma queimadura em função de um acidente com um fogão ou com um bujão de gás. Era uma criança, na faixa dos seus 7 ou 8 anos, com grande parte do corpo queimado. Chamei, então, um tenente que comandava uma guarnição do exército e o encarreguei de transportar o garoto ao Hospital da Restauração. Foi e voltou, bateu continência e disse: “Missão cumprida! Infelizmente, derrubei dois muros, em função do deslocamento da água e bati num fusquinha.”. Homem de Deus! Pra que tudo isso? Foi o que perguntei. Levara o pequeno em carro de combate, desses que passa por cima de pau e pedra, derrubando tudo que encontra pela frente. Valha-me Deus do céu!
Com esse mesmo oficial, num raro momento de folga, conversava sobre o sistema de rádio que era usado por ele. Sempre gostei de rádio e esse era o meu hobby, se assim posso chamar. Eu tinha conseguido captar a rede deles, chamava-se Espora e a cabeça da rede tinha a denominação específica de Espora Dourada. Captei o sistema através de um harmônico, uma falha na transmissão que faz a onda mudar de freqüência. Comentei com ele e quase saio dali preso. Fez inúmeras indagações, mas terminou se conformando quando lhe pedi: “Homem! Faça de conta que nada ouviu e que nada disse. Isso foi um acidente de percurso. Fica o dito pelo não dito.” E ele, mais ou menos de minha idade, conformou-se, esqueceu o problema. Deve ser hoje em dia um coronel e reformado ainda mais.
No segundo episódio mandaram que fosse passar a noite no Palácio do Governo. Quando a escuridão do tempo chegou, vieram me avisar que deveria ir a Limoeiro, de helicóptero. A cidade estava debaixo d’água e não havia estrada disponível. Aceitei a missão, mas no veículo aéreo, de jeito nenhum. Fui de caminhonete e lá cheguei com um engenheiro e mais uma assistente social. A primeira coisa foi receber um homem que desejava falar com a pessoa do Governo. Ora, sempre fui muito falastrão e me apresentaram como tal. O pobre homem, gente humilde do interior, expressou o seu desejo: “Gostaria de uma ordem para dormir!”. Por que isso? Foi o que indaguei. “É porque faz três noites que não durmo, só medindo as águas na ponte.”. Ah! – complementei – é por isso que no Recife a cada minuto tem um boato de nova enchente. É o senhor dormindo, enquanto mede o nível do rio, disse. “Vá dormir, imediatamente!” E o homem foi! Coitado! Cumpria o seu dever por cima de tudo, de sua própria exaustão.
Quando as coisas serenaram, resolveram montar uma equipe e fazer um treinamento. É claro que nesse momento eu tinha que ser, novamente, escalado. Tudo que é diferente e estranho é comigo! E fui! O meu papel seria chegar à ponte do Sport Club do Recife e dali passar para o outro lado de lancha, me dirigindo para um abrigo na Cidade Universitária. Bom! Fui ao treinamento, chegando atrasado, pelo que o major responsável não gostou, óbvio, mas suportou. Quis, todavia, me testar e virando-se para mim verbalizou em alto e bom som: “O senhor veio de lancha?” Era para que simulasse a situação como verídica. E eu: “Não senhor! Vim na Rural Willis do Centro de Saúde!” O militar, sem notar que eu estava levando na graça, complementou: “O que traz em sua maleta de emergência? Soro anti-ofìdico?”. A maleta estava na mão da auxiliar e nada havia em seu interior. Respondi da forma mais serena possível: “Nada trago! Só a maleta vazia e nada mais!.” E o penitente fardado complementou à sua maneira: “Não entendeu!”.

Essas são as notícias das cheias no Recife. Anos 70, tempo de muito aperreio e dias de muita encrenca.


(*) Um texto de lembranças, ao mesmo tempo trágicas e cômicas. Um mundo d'água tomando conta do Recife, o povo correndo apavorado e se abrigando nos colégios e eu, jovem médico, aguentando o pau, trabalhando feito um burro de carga, mas, vez ou outra, distraindo o juízo, porque, como já disse Ascenso:"... ninguem é de ferro/...". Desejando comentar o faça aqui mesmo, neste espaço virtual ou escreva para pereira@elogica.com.br


3 comentários:

  1. Quanta humildade e sabedoria vemos nos mais simples, ao lado de certa prepotência dos mais sofisticados. E nós, lá no meio, tentando participar de ambos os universos, fazendo a nossa missão. Em cada dia, uma nova. A sua, hoje é nos ministrar, homeopaticamente falando, doses de vida em pílulas douradas de bom humor. Abraços, CD.

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  2. Meu caro Geraldo,
    Foi a primeira vez que vi falar daquelas tagédias dos anos 70, com humor. É isso parodiando a canção: "O que dá pra chorar, dá pra rir..." Ui!Na canção era ao inverso.
    Parabéns
    Girley Brazileiro

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  3. Que poesia linda e comovente. Até chorei!!!! abçs.

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