quinta-feira, 9 de julho de 2009

“Chorando por que?”

Sou do tempo em que ia se concluir o Curso Primário em colégio diferente, contanto que se pudesse, ali mesmo, fazer o chamado Exame de Admissão ao Ginásio, extinto no hoje do tempo. Sendo assim, sai do Grupo Escolar “João Barbalho” no segundo semestre, ai pelo mês de setembro ou já no mês de outubro e fui matriculado no Colégio Nóbrega. No primeiro dia de aula, voltei para casa e dei a triste notícia a meu pai: “Tirei zero no ditado!”. Foi um horror, mas me expliquei a contento, imagino, pois justifiquei que o professor falava de uma forma diferente, completamente diversa do que aprendera. E meu pai justificou que o sotaque do homem era o de Portugal, por isso pronunciou, como ele, varias palavras e eu fui me habituando ao vernáculo desigual. Era o Irmão Fonseca, homem mais velho, muito alto e magro, vestindo enorme batina preta e que nunca largou a vara de bambu com que batia nos rebeldes.
Levei dessas tabicadas, como se costumava dizer, em variadas ocasiões, mas nada me incomodava tanto como os castigos do Irmão Fonseca. Ora, ficar virando para a parede, de braços abertos, como o Cristo, horas a fio, foi das punições a que mais me doía. Era horrível, porque com o passar do tempo o peso dos membros superiores ia se tornando insuportável e o penitente deixava que caíssem, ao bel sabor da gravidade. E ainda pior, era ajoelhar-se em caroços de milho. Três ou quatro caroços, a depender do erro ou da falha, em cada um dos joelhos. Uma hora assim valia como expiação pelo pecado do comportamento inadequado em sala de aula. Mas, certa vez, já era menino mais taludo, meu pai me contou que fora professor no Colégio Nóbrega e punira um aluno que se atrevera a responder a presença em canto gregoriano. Não tive dúvidas e prometi: “Amanhã desconto a petulância!”.
No dia seguinte, esperei para responder e me esmerei no eclesiástico cântico: “Preeeeeeesente!”. E o professor não teve dúvidas: “Pra fora! Apresente-se ao Subdiretor!”. Quase não escrevo a última palavra, tal as mudanças que ocorreram. Mas, é assim mesmo. Como não acordei para tratar da reforma ortográfica e sim para escrever uma crônica, volto ao tema. Indagou-me o padre as razões para ter sido tão inconveniente. Contei que fizeram isso com o meu pai e eu estava, apenas, cuidando em me vingar. Não foi bom! Veio um sermão sobre a vingança que me lembrou as cantigas de Maria Baixinha: “Eu gostei tanto, tanto, quando me contaram/.../O remorso, talvez, seja a causa do seu desespero/.../Só vingança, vingança, vingança/Aos santos clamar/.../ Você há de rolar como as pedras que rolam na estrada/”. Ouvi aquilo, dei o dito pelo não dito, e voltei para a sala. Eu sempre tive uma fantasia ao lado para ilustrar os meus momentos mais difíceis. Não sei se foi bom ou se foi ruim! Mas que tinha, isso tinha!
Na ordem dos jesuítas o prestigio dos irmãos era menor, certamente ainda o é, porque não ministravam os sacramentos e tinham como atribuições os chamados ofícios domésticos. Na verdade, ofícios menores, pois a sacristia era entregue a um desses, bem com a horta. Lembro que o Irmão Pires era o responsável pela agenda das missas e pela manutenção da igreja ou da capela, como queiram chamar, além de ser o fabricante das hóstias. Era ai que eu me fartava, levando pra casa os retalhos do trigo, cortados para dar forma às partículas a serem consagradas. Era uma lata de biscoitos cheia para comer. Aquilo, porém, não me contentava. Afinal, eu estava numa fase de transgressão e precisava fazer alguma coisa errada para caracterizar a violação da ordem. Foi assim que passei pelas grades da sacristia, numa tarde qualquer, entrei no lugar e fiz um furto. Tirei inúmeras hóstias e levei pra casa. O meu pai indagou, conforme os costumes, como tinha conseguido o material quase sacro já. Não falei do furto, neguei a priori e disse que tinha recebido de presente. Fartei-me de tanto comer o trigo puro do pão ázimo e na segunda-feira aguentei a investigação. Ninguém sabia quem fora e eu nunca me acusei.
No cotidiano das coisas a situação era pior. Um dia, fiz uma anarquia qualquer em sala de aula e o professor mandou sair. Fui lá fora e na quadra de basquete consegui outra camisa. Voltei e o mestre não hesitou: “Mandei o senhor pra fora agora mesmo!”. Eu respondi na bucha: “Eu? O senhor está enganado! Quem saiu daqui agora foi o meu irmão gêmeo!”. E o lente – iludido, coitado! – pediu desculpas e mandou que entrasse. De outra feita, o professor de geografia mandou que todos abrissem os atlas. De minha parte, como não tinha o livro em questão, decidi que melhor seria abrir no choro, ao que o docente indagou: “Chorando por que?”. Respondi de logo: “É que meu pai não tem dinheiro para comprar e eu não posso estudar os mapas!”. Era mentira, claro! Aquilo tocou o coração do homem e eu fui autorizado a frequentar as aulas sem incomodo algum. O meu atlas chegou ao final do ano íntegro, como foi comprado.
(*) - Foi um tempo bom! De muito aprendizado e de convivência salutar! Agora, distante desses anos da adolescência, integrando o Conselho Estadual de Cultura, vou assumir o processo de tombamento da Capela de Nossa Senhora de Fátima. Ainda não estudei o caso, mas estou aberto às sugestões, sobretudo de ex-alunos. Comentários para o Blog, diretamente ou para pereira@elogica.com.br ou pereira.gj@gmail.com

Um comentário:

  1. As lembranças que a maioria das pessoas trazem de seus anos escolares geralmente estão associadas a postura incoveniente de seus ex-professores (hoje chamados de educadores, bah! como se isso muda-se-lhe a postura autoritária e detentora que o legado da profissão lhe presenteou).
    Tais lembranças (eu diria amargas), tornam-se adocicadas, pois, vem acompanhadas também das lembranças de nossas ações juvenis tão fulgorosas e despretenciosas beirando a irresponsabilidade que os anos de vida que ganhamos não permitem que as despertemos mais...nem que seja uma única vez...

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