terça-feira, 18 de agosto de 2009

Cosme e Damião: Dois Santos e uma Febre

Andei estudando a questão dos ex-votos para uma palestra, sobretudo aqueles pintados, e por isso mesmo com um toque artístico, mais que os outros, considerados anatômicos, forjados na madeira ou na cera. Achei interessantíssimos, especialmente o que está em Igarassu, no convento de Santo Antônio, no antigo alojamento dos noviços, em cujo convento estive há pouco tempo, com esse propósito mesmo, o de apreciar o ex-voto criado como paga de uma promessa feita pelo povo da cidade aos santos Cosme e Damião, para livrar o lugar da febre amarela, nos idos de 1685. E a localidade conseguiu êxito neste mister, isto é, ninguém adoeceu, em que pese a doença ter quase dizimado os habitantes do Recife, de Olinda, de Goiana e de Itamaracá. Se os santos intercederam ou não é impossível dizer, mas a gente de Igarassu conseguiu essa proeza.
Vale salientar que nesses quadros votivos se tem alguns elementos distintos. O espaço celeste, no qual aparece representado o santo que foi invocado para a intercessão junto ao Pai, o único a oferecer a benção; espaço que segundo os estudiosos vem diminuindo mais e mais ao longo do tempo, talvez, como justificam, pela cordialidade desejada e pretendida entre os penitentes e o ambiente da divindade. Depois vem a cena propriamente dita, como seja o leito em que esteve acamado o paciente e o doente em si, coberto, quase sempre, por um lençol vermelho, a cor que afasta o diabo, na visão do povo. Ou o palco no qual se deu o acidente, seja no trabalho ou numa viagem e até num passeio. Por fim, a legenda, a qual dá conta do que sucedeu e da graça alcançada, invocando-se a figura celeste integrante da pintura.
Tais quadros servem não apenas ao estudo histórico das épocas, mas também à investigação antropológica. As vestimentas – as vestes femininas e as indumentárias masculinas – variam conforme o tempo, bem como os adereços. As perucas são comuns no século XVII, por exemplo. Mas, era frequente os contratantes pedirem que fossem caracterizados mais solenemente, de forma a parecerem integrantes, sem muitas dúvidas, da aristocracia local. Móveis e outros equipamentos da residência também aparecem nos cenários e servem ao entendimento dessa distribuição doméstica. É fácil encontrar vasos (pinicos) em baixo das camas, como era comum acontecer. Há casos nos quais nota-se uma sequência explicativa entre o “antes” e o “depois”. Em acidentes, digamos, isso pode ser mais facilmente demonstrado. Noutras situações aparecem animais, os que adoeceram ou ainda certos bens conseguidos depois de um pedido.
As pinturas, a óleo sobre madeira ou utilizando a têmpera, uma tinta artesanal constante de um pigmento ao qual se acrescenta um adstringente, a cola ou a clara de ovo, o que facilita a fixação da matéria pictórica, eram feitas, no geral, por pintores ingênuos, isto é, amadores, pintores de dia de domingo, sem formação acadêmica, os conseguem o realismo daqueles aos quais admira e preza. Os ingênuos são diferentes dos primitivos, pois que esses interpretam o mundo como mágico e povoado de medos e terrores. Não têm a imagem humana como representação central da cena e sendo essas figuras mais geométricas e nunca em terceira dimensão. Muito raramente um pintor erudito se encarregava de um quadro. No Brasil, a grande exceção foi Auguste-Marie Taunay, autor de um ex-voto encomendado pela princesa Izabel pela recuperação de Dom Pedro depois de uma queda de cavalo.
O ex-voto de Igarassu, pintado, como se disse, em virtude de uma promessa feita aos santos Cosme e Damião, padroeiros da cidade, para que a febre amarela não chegasse ao lugar, é muito interessante. Mostra Olinda, Recife, Goiana e Itamaracá tomados pela doença, com a bruxa da morte ceifando a vida de toda gente. Enquanto isso, Igarassu aparece com os protetores celestes afugentando a mulher de preto que tenta ingressar no ambiente urbano, mas sem sucesso. Em que pese ter sido pintada, certamente, por um artista ingênuo, a Marim dos Caetés (Olinda) reproduzida na obra é de uma certa fidelidade, haja vista mostrar o Varadouro e a ponte de acesso a cidade. Ao longe se tem a casa de Duarte Coelho, hoje destruída. Uma pintura originalmente posta na igreja dos santos padroeiros e depois acomodada, por questão de segurança no Convento de Santo Antônio.

(*) Crônica em torno do que vi em Igarassu e do que estudei para uma palestra no Instituto Pernambucano de História da Medicina. Texto que ofereço com simplicidade ao ilustre historiador Carlos Miranda, jovem professor com quem tenho aprendido muito. Comente: pereira@elogica.com.br ou pereira.gj@gmail.com Ou ainda o faça no espaço mesmo do Blog.

Um comentário:

  1. Deveu ser muito interessante a visão de tais pinturas.

    Santos Cosme e Damián com muita devoción em Espanha, no norte, sobretudo, cuja festa se celebra agora, o 26 de setembro.
    Irmãos gémeos que, segundo a tradição oral, nasceram em Arabia, eram distintos médicos, que como autênticos cristãos perseguidos na época (século IV) não aceitavam pagamento algum por seus serviços.
    São os patronos de medicos, cirujanos, dentistas etc.
    Dizem que a espada pela que foram decapitados em tempos de Dioceciano, se encontra na catedral de Essen, uma cidade ao oeste de Alemanha, na Renania do Norte, bem pertinho de Düsseldof.
    Tamben contam que existem três casais de santos que são venerados baixo estes nomes: os de Arabia, decapitados por ordem de Diocesano, os de Roma, apedreados durante o reinado de Caino e os filhos de Teódata, que não foram mártirizados.

    Lembranças à cidade do Capibaribe e do quase sempre esquecido Beberibe. Hermenegildo

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