segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Um Recife do Antes

Eu conheci o Recife dos meados do século XX! De sobrados e casarões, de terreiros enormes, nos quais frutificavam mangueiras de saborosas mangas, jambeiros de copas largas e touceiras da melhor banana, onde se criava a galinha gorda e poedeira ou o caranguejo cevado em velhos garajaus. O Recife de ruas e de ruelas, das famílias reunidas nas calçadas fiando conversa; das novas avenidas servindo de passarela à juventude em flor, nas incursões vespertinas ao centro da cidade, para o footing de que falavam os antigos ou para um filme qualquer nos cinemas das elites. Da beira do rio bem cuidada, bem acabada em longas muretas de cimento, de pronto apelidadas de Quem-me-Quer, nas quais sentavam moçoilas casadoiras para um flerte noturno com os estudantes do secundário, alunos do Nóbrega ou do Marista, do Salesiano ou do Padre Felix.
Um Recife dos bondes cortando os caminhos, pra lá e pra cá, levando a gente trabalhadora ou trazendo de volta meninos e meninas do grupo escolar. Dos ônibus da Pernambuco Autoviária Ltda, devidamente, equipados com rádios de comunicação, para perplexidade geral e irrestrita dos passageiros da época. Dos automóveis importados da granfinagem, conduzindo o pai e a mãe, os filhos, também, além da avó e das tias solteironas às compras na Imperatriz ou na rua Nova. Das bicicletas e das motocicletas, as primeiras reservadas ao proletariado e as outras à distração de burgueses empedernidos. Das carroças de cavalo sujando os passeios, às vezes adaptadas pelos mascates à venda diversificada das miudezas de casa, anunciadas pela barulhenta matraca, dos agrados da irreverente garotada.
Cidade das mercearias espalhadas em cada rua, quase, expondo mercadorias da cozinha regional, cobradas ao final de cada mês, conforme as anotações em caderneta apropriada e para tanto destinada, de capa dura nos começos, mas de espiral e bom papel, em seguida. O feijão e a farinha, o arroz e a carne de charque, o bacalhau, de que se serviam os pobres e o fígado de alemão, com igual destinação social. De farmácias que davam plantão e se prestavam, também, aos encontros de fim de tarde da gente de terceira idade, velhos que não eram velhos. De antigos telefones no fundo desses estabelecimentos, com um bocal muito grande e muito largo, no qual o interlocutor gritava, a plenos pulmões, as sentenças da ira ou as manifestações dos amores, enquanto a assistência de ocasião ouvia e cortava a seda da hora.
Lugar de brincadeiras preenchendo as manhãs e enchendo as tardes, peladas no calçamento, com bola de meia, tantas vezes ou com o produto mais moderno, popularizado, então, de borracha ou de couro. Barra-bandeira e pega-soltou, academia e bola de gude. A pipa solta no ares, com o nome de papagaio, como se chamava naqueles antanhos, distantes anos do lúdico no silêncio do esconde-esconde ou na lamuriosa loa: Eu sou pobre/Pobre/Pobre/De marré/Marré/Marré... O velocípede antecipando os dias e a patinete alvoroçando os outros, os patins de rolimã deslizando nas calçadas e fazendo um ruído de ensurdecer as avós inquietas e as tias impacientes com as peraltices infantis. A bicicleta de boa marca chegando como prêmio, contrapedal ou com os freios de mão ajustados à altura das rodas e das jantes.
Recanto de outros encantos, de moças passando e passeando, na ida para o colégio ou na volta das aulas e dos recreios, deixando nos ares um rabo de olho qualquer, incendiando corações ou acendendo a fogueira das paixões. Rapazes imberbes, quase, nos ritos e nas liturgias das iniciações e dos amores. Casais de mãos dadas ou enlaçados, nunca inteiramente abraçados, ósculos roubados nos carroceis dos ares. Dores, tantas vezes, nas feridas das rupturas. Lágrimas verdes ou azuis, de tonalidade castanha ou de cor mais fechada, o preto. Lágrimas sem cor, descoloridas, na verdade, pelas decepções. Prantos contidos e choros convulsos!
Eu conheci o Recife dos meados do século XX!

(*) - Um texto escrito já há bom tempo, em homenagem aos que viveram na cidade nos anos cinquenta e sessenta e hoje estão cursando a sétima década ou muito próximo dessa idade. O leitor que desejar comentar o faça no espaço mesmo do Blog ou os e-mails pereira.gj@gmail.com ou ainda pereira@elogica.com.br

4 comentários:

  1. Eu, também 66 bem vividos, portanto seu coetâneo e conterrâneo, Geraldo, vivi isso tudo e disso tudo tenho uma saudade boa.
    Recifenses somos, portanto, mascates.
    Mascates de lembranças.
    Obrigado por me fazer recordar tanta coisa boa!

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  2. Geraldo,

    Você disse tudo: em linhas e nas entrelinhas faz a gente parecer voltar nos tempos e até curtir uma saudade.
    Tempos antigos que se fizeram contrários aos tempos atuais. Mudanças e o antes que não existe mais.
    Você disse tudo de forma elaborada e interessante: "Velhos que não eram velhos...."
    É isso mesmo, Geraldo! Parabéns por este encanto de crônica!!!!
    Eliana

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  3. Gostei mesmo.
    Eu também escrevo sobre uma época do Recife matuto que nunca mais voltará. Quero deixar pra posteridade coisas corriqueiras que ninguém nunca se interessou e isto em relação direta com a comunidade israelita do Recife.
    "Nas primeiras décadas do século XX as coisas eram um bocado diferente e mais inocente na maneira de ser.
    Recordando hoje a maneira de ver as coisas como menino naquela época, o mundo me parecia ser uma sociedade mais educada ao se expressar.
    Toda e qualquer profissão era valorizada por todos, respeitada e não importava quem a professava.
    Fosse o varredor da rua, o carvoeiro, o verdureiro, o "pastor" de peruas, o da igreja Evangélica, ou o funcionário do cartório púbico e tinha um desses cartórios na Rua Gervásio Pires, na calçada onde estacionavam os carros de aluguel (assim chamavam o taxi naquela época), bem perto do Hotel Central na Manuel Borba com a Rua Gervásio Pires.
    Acho que meu atestado de nascimento foi registrado lá.
    Havia respeito mutuo entre todos.
    Esse negocio de classes e segregação de grupos humanos, que eu me lembre, naquele tempo não existia, isso apareceu muito mais tarde quando alguns "intelectuais de salão" e a classe operaria acordou do sonho "deitado eternamente em berço esplendido", como diz o nosso Hino Nacional.
    Existiam ricos e pobres (nem os ricos eram magnatas nem os pobres viviam na miséria). Conviviam com a "ajuda de Deus".
    Talvez fosse a maneira inocente de um menino ver as coisas.
    Sem querer ser romântico, me parece que a qualidade de vida naquela época era melhor que hoje. Sei lá!
    Era praxe usar as expressões: "Bom dia meu senhor, com muito gosto, está às ordens, seu criado, como vai vosmecê, sua senhoria, sinhazinha, recomendações a senhora, cuidado com a chuva pra não se molhar e pegar um constipado", e daí pra frente. Toda gente falava assim, pobres e ricos de todas as raças e todas as cores. Bonito, não é?"
    Isto é um trecho de uma crônica completa que no futuro será publicada num blog do Recife.
    Paulo Lisker.
    P.S. Fica a sua decisão publicar ou não.

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  4. Todos tem o seu Recife da saudade...

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