Na rua em que
morava quando menino tinha uma casa muito grande de esquina; casa avarandada,
de vários cômodos, como se notava olhando de fora. O alpendre circulando o
prédio, raramente acolhia um penitente que fosse e no jardim um enorme
jambeiro fazia a festa da meninada. O meu pai chamava a casa de Guaporé e eu
passei a chamá-la assim também, sem entender bem as razões daquele cognome. Era
comum dizer: “Vou andando até o Guaporé!”. Depois é que entendi os motivos do
apelido predial, a construção tinha muito a ver com a casa da infância paterna,
no vale do Ceará-Mirim. E eu me criei ouvindo histórias de lá, da terra em que
nascera Nilo Pereira.
Meu pai
guardava os hábitos que trouxera de sua família original, como aquele de
esperar a passagem do ano com os filhos, a esposa, a mãe e a tia na sala de
casa. E quando se aproximava a hora da virada, mandava que fossem acesas todas
as luzes, objetivando receber o novo ano com a maior claridade possível. Isso acordava o meu pintassilgo, todos os anos. Não
era supersticioso, dizia, mas tinha lá os seus cuidados. Não deixava um sapato
emborcado por nada nesse mundo e se resguardava das pessoas capazes de botar olhado.
Havia uma senhora assim, figura que vez ou outra aparecia e ele não queria
conversa, recolhia-se imediatamente a seu quarto de estudos, “a jaula”, como
chamava, onde se mantinha preso. Voltava-se para a leitura; leitura, aliás, com
a qual se ocupava horas e horas do dia. Lia, às vezes, dois ou três livros de
uma vez.
Na última
noite de vida quase não conseguiu dormir. Eu estava a seu lado, deitado em
colchonete junto à sua cama. E ele a certa altura indagou: “O que faço
agora?”. Não tive dúvidas: leia. Ele abriu um livro que estava em sua
cabeceira, depois outro e não fez mais do que passar as páginas, não parecia
ter disposição para fazer o que mais lhe agradava, a leitura. Foi assim, com uma
brincadeira que fiz, estirou o braço e com a mão fez um gesto: basta. Como quem
diz, não há mais espaço para graça! Pela manhã, logo cedo, depois do amanhecer,
me despedi, precisava dormir. Ele me disse: “Preciso falar com você! Passe aqui
mais tarde!”. Combinamos isso, mas quando cheguei em casa tive a notícia: “Dr.
Nilo morreu!”. Nunca soube o que queria e de nada serve imaginar, fantasiar. Fiz mil conjecturas a propósito do que seria. Mas, é impossível descobrir o que tinha em mente.
Gostava de
ouvir música clássica, de sentar numa cadeira de balanço, dessas de palhinha e
deixar-se embalar pelos acordes de um Beethoven, de um Chopin ou de um Mozart.
Na noite em que comprou uma radiola, convidou os amigos para um café – não era
de bebidas com álcool –, formando-se uma roda no terraço de casa. A minha mãe,
pouco versada em matéria de recepção, decidiu-se por servir um conhaque
acompanhando as finíssimas xícaras de café chinesas, do tipo casca de ovo, mas
não tinha o traquejo com a bebida, um Macieira cinco estrelas, ganho de presente
no Natal e ainda fechado. Resultado, serviu o aperitivo em pequeníssimos
cálices. Muitos anos depois, no Hotel Ducal, em Natal, vi um garçom servindo o
conhaque e descobri que o copo era outro, bem diferente daqueles. E que havia
um ritual próprio.
A minha avó
veio do Ceará-Mirim com uma irmã – a tia velha –, com enormes baús de madeira,
nos quais guardavam o pouco que tinham de roupas e de peças oriundas da casa na
rua São José ou ainda o que dispunham do velho engenho Verde-Nasce. O que mais
chamava atenção do menino que fui, eram os pratos de uma louça de qualidade
duvidosa, mas com a marca do pai delas, meu bisavô: Victor de Castro Barroca.
Lia-se o nome dele gravado nas peças. Elas não davam valor àquele material e
com esses pratos serviam-se os pedintes no portão; àqueles sob a proteção de
minha avó, cuja recomendação sempre foi: “Não se nega uma esmola!”. Havia,
também, o que restou de certo faqueiro de prata, com a inscrição “B”,
representando a família Barroca, de onde vinham a avó e a tia velha.
Essa tia,
Deolinda de prenome, era moça velha, como se usava dizer e o que se contava a
boca pequena, nunca confirmado por ela, é que fora noiva de um soldado que
morrera na Guerra do Paraguai e a partir daí não se engraçara mais por ninguém,
ficara viúva sem que fosse casada. O noivo fora, a bem da verdade, à Guerra de Canudos, vi depois, consultando alfarrábios virtuais. O engraçado nela é que tendo nascido na
noite de Natal, ficava indignada com a brincadeira de que teria a idade de
Cristo. Mulher sem eira nem beira, dependia dos parcos recursos de meu pai, mas
nunca dispensou uma fezinha no jogo do bicho, no qual muito raramente ganhava.
Tinha uma caixa de fósforos com os números todos da roda do bicho e era
dali que tirava os palpites.
Ouvi muitas
histórias, como a do acendedor de lampião e tantas outras. Mas isso fica para
outra vez.
(*) A crônica é reproduzida pelo Jornal A Besta Fubana, sob a gerência bem conduzida do Papa Berto I, a sua Papisa e mais, o Papinha. Deus os proteja e os proporcione um Natal pleno de harmonia e luz.
Caro Geraldo, gosto muito de suas relembranças. Parabéns pelos textos saudosos e bem elaborados.
ResponderExcluirOrmuz Simonetti
E o Ceará Mirim ainda anda pelo Recife...
ResponderExcluirGeraldo,
ResponderExcluirRecordações e mais recordações. Arquivo vivo de tantas histórias do pai.
Não deixe morrer essas lembranças. Essa época natalina, inspira, de forma mais exacerbada,o que se foi, mas se perpetua em nossos corações.Isso é bom e faz bem!!!!!!!!!
Eliana
Geraldo,
ResponderExcluirNão deixe morrerem essas lembranças. Papai, de onde estiver, ficará contente...
Eliana
Sempre muito bonito e tocante o que você escreve sobre seu pai. E sempre remete ao meu que, como admirador de Nilo Pereira, é bem possível que estaja "por lá" batendo um bom papo com ele e tomando um café. Silvio Costa, o da UFPE
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