sábado, 10 de maio de 2014

Preso na despensa

Minha mãe com o seu vestido azul à frente. A segunda, da direita
para a esquerda.
 
         Este é o primeiro dia das mães que passo sem ela. Ela viveu muito, é bem verdade, chegou aos 94 anos de idade, tendo perdido a lucidez há coisa de 4 ou 5 anos. Numa das últimas vezes em que a visitei ainda lúcida ou quase isso, disse-lhe que ia fazer 90 anos, não acreditou e desconversou: “Você está brincando!”. Ainda lhe comuniquei sobre as derradeiras mortes da família e ela também não acreditou. Não podia crer que gente tão mais nova pudesse morrer. Mas, morreram alguns! Agora, a tia que ainda restava se foi, encantou-se no infinito das coisas. Eu estava em São Paulo e essa tia faleceu em Campina Grande. Não pude ir a nada, mas no meu silêncio rezei por ela.     
A avó e duas de suas netas, minhas filhas.
Era comum indagar a minha mãe: “O que você quer de presente?”. E depois de muita insistência ouvir sempre a mesma resposta: “Um vestido azul, de puro algodão!”. E lá ia eu para a loja de tecidos comprar o seu desejo. E era assim, de azul, que ela andava, bem vestida e elegante. Dia desses até, recebi de colega meu foto muito significativa, do grupo de colegas do Colégio São José, com 50 anos de formadas. E lá estava ela, com a minha tia Ilva, vestida no azul de seus costumes. Lembro dela mais em seus tempos de entendimento perfeito das coisas. Dos meus anos de infância, dos dias de minhas travessuras, a agilidade de seus gestos e a singeleza de seus carões.
A minha avó - uma de minhas mães - com o seu
vestido preto habitual, do luto permanente.
Fui um menino de muitas mães, de duas avós; a paterna bem mais próxima, com quem fui criado e estou habituado a dizer que fiquei azougado, porque quem assim é causado ou cevado ou fica leso ou se transforma, como eu, num menino inquieto. Adoidado! Tinha também uma tia velha; tia – coitada! – que eu acho que a levei ao desespero várias vezes, dando trotes originados do purgatório, fruto de meu imaginário irrequieto ou mexendo com o depósito de pão, de sua responsabilidade no ambiente da moradia. Um deus nos acuda! E por fim, a tia mais nova, viúva sensual, policiada pelas amigas em relação aos maridos enxeridos. Mas, ela – coitada! – de um pudor a toda prova.
Guardo, ainda, como presente de minha mãe, uma lampadazinha para deixar acesa no banheiro e não tropeçar quando levantar à noite. Está lá por Aldeia e eu não durmo sem acender, lembrando dela e de seus cuidados com os filhos. Era muito disso, dessas pequenas coisas. Os seus castigos eram frágeis, porque passavam muito antes do previsto. Fiquei vezes e vezes sentado na sala de jantar, cumprindo um período de reprimenda, mas levantava depois de cinco minutos, se muito. Uma vez, trancou-me na despensa a chave e eu fiquei com esse trauma, passei a ter medo do elevador. Ela – coitada! – me pediu desculpas centenas de vezes. Eu venci o medo e a desculpei há muitos anos. Foi num momento de desespero dela, sem conseguir me conter e o fez, com toda certeza, para o meu bem.
Eu e minha esposa.
Eu vou fazer por aqui, por casa, um almoço para a mãe de minhas filhas e vou lembrar da minha e a minha mulher há de recordar também da dela, que se encantou no mesmo ano que a minha. Há mães que perderam seus filhos – todos os dias se vê isso -, para as quais eu deixo a minha oração silente.
Paz aos homens de boa vontade!   Feliz dia das mães a todos, a filhos que têm mães e filhos que não têm mais mães. E feliz dia das mães àquelas que têm os seus filhos e às que os perderam nessa corrida infeliz da vida. Muita paz!   

2 comentários:

  1. Caro Geraldo:
    Sensibilizada com sua crônica, alusivo às mães, emocionada com suas palavras, eu digo, acho que mãe é santa. Não porque não tenha pecados, mas porque sofre os dos filhos. Só quem é mãe para saber a alegria de vê-los nascer e muito maior, deve ser a dor de vê-los partir.
    Ouvi alguém dizer certa vez: - "Mãe devia ser eterna"-, devia sim! Mas dentro de nós, mãe não morre nunca, vive para sempre, elas só se "encantam" no infinito dos céus... Mas lá, juntam-se e formam um coral e cantam cantigas de ninar para seus filhos. Para mãe, filho é sempre criança, não importa a idade cronológica dele. Amanhã será um dia de recordações, de saudades... Que ao menos nesse dia, o mundo conturbado e carente de amor, pare um pouco e faça silêncio, para ouvir essa cantiga de paz. Obrigada pelo sentimental texto. Um abraço!

    Lígia Beltrão - Divulga Escritor

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  2. Meu caro acadêmico Geraldo,
    Aprecio muito suas referências à família, o que diz muito bem de uma pessoa. Admiro isso!
    Prender na despensa, puxar orelha e, à vezes, até um bom cascudo, fizeram parte de uma pedagogia que deu certo. Levei colher de pau na cabeça, algumas vezes. Aliviei um pouco com minhas filhas, mesmo assim, dei palmada na bunda. Ainda hoje, elas se lembram e me agradecem. Também tive uma tia como "co-mãe", me permita o neologismo. Com tudo isso, meu caro, "demos pra gente", o que não tem acontecido muito com as novas pedagogias. Continue dando vestido azuis a sua mãe, mesmo que sejam "encantados no infinito das coisas". Silvio Costa, o da UFPE.

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