Esses tempos de agora, dos começos de um novo século ou dos inícios quase silentes do terceiro milênio, estão me parecendo mais do que propícios às digressões do espírito e aos devaneios paridos das entranhas d'alma ou às lembranças dos antanhos perdidos nas brumas, paradoxalmente, claras do passado. É o que posso concluir, depois do que tenho escrito e, sobretudo, depois de ter ouvido comentários a propósito de minha derradeira crônica — Fim de Século —, publicada por cá, neste espaço de jornal. É assim, as datas servem pra isso, para a reflexão dos anos, para um resgate do que se encantou nas sombras do ontem. Há uma crise do humano e os afetos estão condenados ao degredo! Exílio dos sentimentos!
Lembro de minha avó paterna, Beatriz de prenome, de seus medos e de seus receios quando o calendário virou e fez nascer o seu outro século! Fim de mundo, pensou! E o mundo não findou! A grande roda dos dias continuou a girar e todas as noites, no abraço dos ponteiros, nova anunciação se fez! E mais cem anos se passaram! Noto que as mulheres, mais que os homensL, fazem a leitura das entrelinhas, mergulham fundo na emoção, entendem a mensagem das épocas, tão pessoais que não se imagina possam chegar às intimidades do ontem. Mas chegam, porque o cotidiano ultrapassa a individualidade, socializa a memória!
Aquela senhora que a distância promove a introspecção da
hora, retoma as veredas da adolescência, revive os caminhos da juventude, anda
pelas alamedas de seus outroras e identifica cantos ou recantos, encanta-se,
então, com as recordações do antes. Faz projeções quase metafóricas e imagina
que o autor ingressou na idade das lembranças. Tem razão e não tem! É que a
saudade vai se materializando assim, em fantasias dos reencontros com o tempo!
Sonhos nascidos do imaginário, devaneios que se espraiam nos ares do mundo,
amorfas silhuetas dos que se foram! Alguns para sempre e outros porque apenas
passaram! Os atores dos espetáculos do meu hoje não são mais os mesmos, mudaram
os figurantes e trocaram os cenários.
A professora de pouca idade não viveu os meus anos, mas tem
similitudes nas lembranças, gosta de recordar seus tempos e suas épocas. É isso
mesmo! Na conta dos séculos os pequenos espaços temporais são quase desprezíveis!
A alma de cada um, no entanto, identifica lugares e coisas que promovem a
convergência dos sentimentos. Há saudades do que se viveu e do que nunca se
viu! Às vezes, surpreendo-me assistindo a um sarau na casa-grande do velho
engenho de meus antepassados. Este piano que ouço agora, enquanto deixo transbordar
o coração, às custas da emergente inspiração, em cujo teclado estão as mãos de
Paulo Valença, tão presente nas minhas idas ao Restaurante Leite, parece
resgatar a sonoridade melodiosa daquelas noites. A minha tia Ema, inglesa de
nascimento que morreu de parto e virou cobra, ouve, atentamente, cada um das
notas e o meu bisavô Vicente, vestido de preto, de luto, sempre, pela filha que
não pôde salvar, com um cálice de bom conhaque, desliza os olhos pela sala,
observando os circunstantes e antevendo futuros.
A senhora loura, de tez clara e olhos da cor da safira, que
em prévia carnavalesca senta junto a mim e faz a voz superar os acordes do
frevo, confessa que as crônicas lhe dão a nítida sensação de que faz parte do
texto. Mistura-se, então, às letras e às palavras, passa pela inusitada
metamorfose do ser, a uma só vez sentimento e frases, períodos, enfim, que
também viveu. Festinhas de bairro e encontros de brotos, idas e vindas ao Clube
Internacional. Anos que se foram e décadas que passaram, momentos felizes de
uma outra juventude. Gente prateando os cabelos com a tinta do tempo! E para
justificar a regra da predominância feminina, o sr. Camilo Brito, faz
digressões sobre os seus dias em terras lusitanas, onde nasceu e de onde trouxe
as lembranças de seus antanhos. E Miguel Doherty, de inglesas origens, como tia
Ema, liga muito cedo, antes das sete. Leu as entrelinhas, confessa! As mulheres
desta terra de Maurício e os homens de além-mar!
Noto que as mulheres fazem a leitura das entrelinhas,
mergulham na emoção.
(*) - Um texto escrito há muitos anos, ai pelo ano 2000, talvez um pouco antes, tratando do século que chegava e do milênio que aflorava. Lembrando outras passagens de tempo assim, com ameaças e com superstições. As opiniões também da gente de me cercava ao tempo.
Caro Geraldo:
ResponderExcluirChorar é bom, lava a alma, costumamos dizer. Então estou eu de alma lavada após ler sua bela crônica. Às vezes, até acho bom esquecer algumas datas, para não recordar coisas tantas e assim morrer lentamente por saudades infindas. Essas lembranças de vó e seus bolos gostosos, as conversas na fazenda dos meus tios, ao som das sinfonias dos ventos fazendo acordes nos talos nus das árvores secas, pela falta de chuvas. A canção do rio, intermitente, a contar-me segredos da vida simples de outrora. Saudades de tudo isso e até de mim mesma, quando sonhava que conquistaria o mundo. Como as coisas passam e ficam só nas lembranças... Felizes os que sabem guardar a vida em gavetas de ouro, para nos mostrar seus tesouros! Está fazendo isso com seus textos.
Infelizmente, como tão bem disse: "HÁ UMA CRISE DO HUMANO E OS AFETOS ESTÃO CONDENADOS AO DEGREDO! EXÍLIO DOS SENTIMENTOS!"
Triste, não é vermos as coisas passarem, tudo morrer, os homens morrerem... Triste é ver morrerem as coisas dentro dos homens. Obrigada, por tão belo texto!
Um abraço como desejo de uma feliz semana.
Lígia Beltrão - Colunista do Divulga Escritor -
Geraldo,
ResponderExcluirO seu texto hoje, longo e perfumado, transformou-se quase em uma poesia. Amo esse estilo, quando você joga com as palavras e faz delirar os leitores com os acordes dos passados, sonorizados pelos ventos dos antigos caminhos, e das reminiscências alegres e dos percalços inocentes...
Você bem sabe o quanto gosto do lirismo dos versos cantados em prosa. Amei e aplaudi. Faça mais textos fundamentados no ontem dos anos e lapidados pelas mãos de quem escreve as vivências e sobrevivências, nos acordes mais profundos do seu ser.
Leio, realmente, as entrelinhas. Mergulho fundo nas emoções e na saudade...Abraços, Eliana Pereira