sábado, 12 de julho de 2014

Exílio de sentimentos

Esses tempos de agora, dos começos de um novo século ou dos inícios quase silentes do terceiro milênio, estão me parecendo mais do que propícios às digressões do espírito e aos devaneios paridos das entranhas d'alma ou às lembranças dos antanhos perdidos nas brumas, paradoxalmente, claras do passado. É o que posso concluir, depois do que tenho escrito e, sobretudo, depois de ter ouvido comentários a propósito de minha derradeira crônica — Fim de Século —, publicada por cá, neste espaço de jornal. É assim, as datas servem pra isso, para a reflexão dos anos, para um resgate do que se encantou nas sombras do ontem. Há uma crise do humano e os afetos estão condenados ao degredo! Exílio dos sentimentos!

Lembro de minha avó paterna, Beatriz de prenome, de seus medos e de seus receios quando o calendário virou e fez nascer o seu outro século! Fim de mundo, pensou! E o mundo não findou! A grande roda dos dias continuou a girar e todas as noites, no abraço dos ponteiros, nova anunciação se fez! E mais cem anos se passaram! Noto que as mulheres, mais que os homensL, fazem a leitura das entrelinhas, mergulham fundo na emoção, entendem a mensagem das épocas, tão pessoais que não se imagina possam chegar às intimidades do ontem. Mas chegam, porque o cotidiano ultrapassa a individualidade, socializa a memória!

Aquela senhora que a distância promove a introspecção da hora, retoma as veredas da adolescência, revive os caminhos da juventude, anda pelas alamedas de seus outroras e identifica cantos ou recantos, encanta-se, então, com as recordações do antes. Faz projeções quase metafóricas e imagina que o autor ingressou na idade das lembranças. Tem razão e não tem! É que a saudade vai se materializando assim, em fantasias dos reencontros com o tempo! Sonhos nascidos do imaginário, devaneios que se espraiam nos ares do mundo, amorfas silhuetas dos que se foram! Alguns para sempre e outros porque apenas passaram! Os atores dos espetáculos do meu hoje não são mais os mesmos, mudaram os figurantes e trocaram os cenários.

A professora de pouca idade não viveu os meus anos, mas tem similitudes nas lembranças, gosta de recordar seus tempos e suas épocas. É isso mesmo! Na conta dos séculos os pequenos espaços temporais são quase desprezíveis! A alma de cada um, no entanto, identifica lugares e coisas que promovem a convergência dos sentimentos. Há saudades do que se viveu e do que nunca se viu! Às vezes, surpreendo-me assistindo a um sarau na casa-grande do velho engenho de meus antepassados. Este piano que ouço agora, enquanto deixo transbordar o coração, às custas da emergente inspiração, em cujo teclado estão as mãos de Paulo Valença, tão presente nas minhas idas ao Restaurante Leite, parece resgatar a sonoridade melodiosa daquelas noites. A minha tia Ema, inglesa de nascimento que morreu de parto e virou cobra, ouve, atentamente, cada um das notas e o meu bisavô Vicente, vestido de preto, de luto, sempre, pela filha que não pôde salvar, com um cálice de bom conhaque, desliza os olhos pela sala, observando os circunstantes e antevendo futuros.

A senhora loura, de tez clara e olhos da cor da safira, que em prévia carnavalesca senta junto a mim e faz a voz superar os acordes do frevo, confessa que as crônicas lhe dão a nítida sensação de que faz parte do texto. Mistura-se, então, às letras e às palavras, passa pela inusitada metamorfose do ser, a uma só vez sentimento e frases, períodos, enfim, que também viveu. Festinhas de bairro e encontros de brotos, idas e vindas ao Clube Internacional. Anos que se foram e décadas que passaram, momentos felizes de uma outra juventude. Gente prateando os cabelos com a tinta do tempo! E para justificar a regra da predominância feminina, o sr. Camilo Brito, faz digressões sobre os seus dias em terras lusitanas, onde nasceu e de onde trouxe as lembranças de seus antanhos. E Miguel Doherty, de inglesas origens, como tia Ema, liga muito cedo, antes das sete. Leu as entrelinhas, confessa! As mulheres desta terra de Maurício e os homens de além-mar!
Noto que as mulheres fazem a leitura das entrelinhas, mergulham na emoção.

(*) - Um texto escrito há muitos anos, ai pelo ano 2000, talvez um pouco antes, tratando do século que chegava e do milênio que aflorava. Lembrando outras passagens de tempo assim, com ameaças e com superstições. As opiniões também da gente de me cercava ao tempo.

2 comentários:

  1. Caro Geraldo:
    Chorar é bom, lava a alma, costumamos dizer. Então estou eu de alma lavada após ler sua bela crônica. Às vezes, até acho bom esquecer algumas datas, para não recordar coisas tantas e assim morrer lentamente por saudades infindas. Essas lembranças de vó e seus bolos gostosos, as conversas na fazenda dos meus tios, ao som das sinfonias dos ventos fazendo acordes nos talos nus das árvores secas, pela falta de chuvas. A canção do rio, intermitente, a contar-me segredos da vida simples de outrora. Saudades de tudo isso e até de mim mesma, quando sonhava que conquistaria o mundo. Como as coisas passam e ficam só nas lembranças... Felizes os que sabem guardar a vida em gavetas de ouro, para nos mostrar seus tesouros! Está fazendo isso com seus textos.
    Infelizmente, como tão bem disse: "HÁ UMA CRISE DO HUMANO E OS AFETOS ESTÃO CONDENADOS AO DEGREDO! EXÍLIO DOS SENTIMENTOS!"
    Triste, não é vermos as coisas passarem, tudo morrer, os homens morrerem... Triste é ver morrerem as coisas dentro dos homens. Obrigada, por tão belo texto!
    Um abraço como desejo de uma feliz semana.

    Lígia Beltrão - Colunista do Divulga Escritor -

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  2. Geraldo,
    O seu texto hoje, longo e perfumado, transformou-se quase em uma poesia. Amo esse estilo, quando você joga com as palavras e faz delirar os leitores com os acordes dos passados, sonorizados pelos ventos dos antigos caminhos, e das reminiscências alegres e dos percalços inocentes...
    Você bem sabe o quanto gosto do lirismo dos versos cantados em prosa. Amei e aplaudi. Faça mais textos fundamentados no ontem dos anos e lapidados pelas mãos de quem escreve as vivências e sobrevivências, nos acordes mais profundos do seu ser.
    Leio, realmente, as entrelinhas. Mergulho fundo nas emoções e na saudade...Abraços, Eliana Pereira

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