quinta-feira, 3 de julho de 2008

Um Sapato Rainha

A idéia da crônica nasceu com uma música que ouvi no carro. Cantava Núbia Lafayette, repetindo canções que eram as mesmas de meu tempo na Festa da Mocidade, onde a cantora fazia par com Dalva de Oliveira nos alto-falantes do lugar. Eu ia todas as noites, nos dias de semana e aos sábados e para completar a semana, nos domingos também. Afinal, a movimentação nas alamedas do velho Parque 13 de Maio só começava com as férias de dezembro, início do mês, na primeira quinzena sempre. Ai, já estávamos livres das provas no colégio e pelo geral passados de ano. Uso o plural, porque não ia sozinho, mas acompanhado pela turma toda, pela galera, como se diz hoje em dia, usando o vocabulário da moçada. Entrava com um permanente do tipo família, entregue em mãos de meu pai pelo fato de ser jornalista de batente. Mesmo assim, com um permanente na mão e com essa facilidade toda de ir e de vir no ambiente da Festa, ele combatia no Jornal do Commercio, em sua coluna diária, o teatro rebolado, condenando a sensualidade das vedetes. Danado isso!
Era proibida em casa a minha presença ali – nem precisava dizer isso –, mas eu nunca perdi um espetáculo, sequer. Devo ter contabilizado uma centena de pecados veniais, nunca mortais, pois via aquilo tudo com a alma lavada e ensaboada, para lembrar o Coronel Odorico Paraguaçu, um personagem interessantíssimo vivido por Paulo Gracindo em novela de televisão. Mas, nasceu com a música de Núbia Lafayette, porque certo dia o meu pai recebeu de presente um sapato Rainha e não gostou. Era comum chegarem esses regalos em casa, o trabalho no jornal estimulava a prática. Livros, então, chegavam em quantidade. Certa vez até, tendo recebido uma linda camisa branca de linho, enviada por um tio materno de São Paulo, onde morava, não gostou do corte; corte, aliás, que imitava roupa semelhante àquela usada pelos clérigos, com a gola em pala: o clegyman. Eu achei a peça bela e gostei que me enrosquei de tê-la comigo, para usar nas passarelas tupiniquins da Festa da Mocidade. Usei tanto que abusei. O número igual dos sapatos e das roupas facilitava os repasses.
Sobre essas camisas assim diferentes, tive depois outra – só duas na vida –, de linho também, mas azul na cor, belíssima e viajei com ela, certa vez, junto com outros colegas médicos. No meio ia um companheiro, que sendo contra-almirante tinha prioridade em todo canto que chegava. E na fila do aeroporto tive um estalo e me dirigindo a ele disse: “Peça prioridade para mim também! Diga que sou o bispo de Petrolina.” E o rapaz do balcão da companhia de aviação concedeu a prioridade, quando deu a resposta: “É! Tem o mesmo direito!” Fui lá e tive o descaramento de dizer que me fazia acompanhar de uma penitente, criatura que integrava a minha diocese. E o homem, sem deixar de vazar curiosidade, falou: “Traga a penitente aqui!”. E entramos todos com essa prioridade estabelecida. O despachante rindo e eu justificando que sendo um sacerdote, precisava de companhias que me fizessem certa corte. Era minha mulher! Ainda o é!
Mas, a verdade é que ganhei o sapato. Um belo par dos primeiros tênis mais diferenciados que chegaram ao comércio. Não era comum se usar tênis, senão nas aulas de educação física do colégio. Mas alguns estavam disponíveis, chulos, se assim posso me expressar, como o célebre e tão usado Conga. A minha tia velha – tia Deolinda – era pessoa pobre, habituou-se às alpargatas Rhodia, as quais mesmo sendo de uma simplicidade ímpar, eram confortáveis. O meu não, era de um tecido encorpado, meio crespo, na cor marrom e com uma sola de borracha sintética que dava gosto de ver. Naquela noite estava satisfeitíssimo, não cabia em mim de tanta vaidade com aquele sapato. Calcei-o sem as meias do cotidiano e fui para a Festa. Andei pra lá e pra cá com a namorada, olhando sempre para os pés e mostrando a ela o meu presente, orgulhoso, mas muito cuidadoso para não estragar.
Estava sentado na mureta de uma das fontes do parque, quando o serviço de rádio anunciou: - Atenção! Atenção! Geraldo Pereira!
De pronto me levantei e disse, quase aos cochichos: “Sou eu!” A namorada admirou-se, mas esperou o desfecho com calma. O auto-falante continuou:
-Volte para casa, pois seu pai precisa sair com os sapatos!
Foi um horror! Ainda maior porque eu tinha me acusado, levantando-me na hora do chamado, denunciando-me, então. Para aquela namorada, parecia que tínhamos em casa apenas um sapato e dividíamos o bem: o meu pai e eu próprio. Sendo – é claro – a prioridade reservada a ele, mais velho e chefe da família.
Mas, não era nada disso. Fora um velho amigo, companheiro das peladas rasgadas em tardes mornas nos quintais do Pombal, que levara a informação até à coxias do serviço de rádio. E disso – de quem fez a arte – só vim saber muitos anos depois, décadas após.

E o meu pai, na varanda de casa, proximidades daquele lugar de tanta animação, ouviu o chamado e ficou rindo sozinho, com os seus botões.

Eis a história de um sapato Rainha.

(*) - O Blog vai oferecido ao meu companheiro de infância, adolescência e juventude João Trindade, com quem joguei bola - ele sempre melhor que eu na pelota -, joguei botão e fiz a ronda das paqueras e dos flertes. O artista dessa história!

Um comentário:

  1. Ri-me às lágrimas. As presepadas de uns amigos sempre nos fazem pagar as nossas, não é verdade?
    Eta, vidinha boa de ser vivida com esses causos.
    Abraços, Carlos Dantas.

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