segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Literalmente na Fossa

Há tempo pra tudo, está escrito. Tempo para semear e tempo para colher. Há também um tempo das alegrias e um tempo para se curtir uma fossa, com as tristezas todas dessa condenação tantas vezes injusta. Nos meus anos de adolescente ou no meu tempo de jovem, dizia-se que experimentar uma fossa era suportar a dor da ruptura. Muitos amores feneceram e foram chorados na musicalidade dos cantores da época. Waldick Soriano gritava, em alto e bom som: “Eu não sou cachorro não...” E Nelson Gonçalves se deixava embalar por Maria Bethânia, cuja inspiração nasceu do imaginário fértil de Capiba, pernambucano ilustre e talentoso: “Maria Bethânia tu és para mim,/A senhora do engenho/Em sonhos eu vejo/Maria Bethânia/És tudo que eu tenho...”
Já vi muita gente amargar os horrores dessas fraturas do amor. Gente que se senta num canto de bar e bebe todas. Ouve um dos cantores especializados nessas baladas de todos os lamentos e deixa a fantasia ganhar os ares das ilusões perdidas. Até o Carnaval é pródigo – ou foi pródigo no passado – em letras de interminável lamúria, dos queixumes duradouros e do lengalenga do pranto das ruínas ou dos fracassos. Lembro-me de um amigo, apelidado de Cururu Pei-Pei, que chorou horrores, quando a sua musa encantada o trocou por Lambreta. No dia da despedida de solteiro, quase emborca todas no velho bar do Parque13 de Maio: A Cabana. E aquela musa, para quem foram as lágrimas do Cururu, terminou viúva, como a mãe, sem o sapo que lhe amava e sem o outro, com cognome de um veículo hoje em desuso: a lambreta. Não puderam amar aquela musa encantada. E eu nem sei dela hoje, tampouco de Cururu Pei-Pei.
Mas, há uma outra fossa, aquela que se vive literalmente falando, isto é, a do contacto direto com o material escatológico. Foi o que me aconteceu em três ocasiões distintas. Uma dessas, francamente, amigo leitor, não há jeito lembrar, mas das outras duas, recordo sem saudades. É que vinha, certa vez, pela rua Carneiro Vilela, nas proximidades da Igreja Episcopal Carismática, à noite, durante uma chuva forte. Estacionei o carro e quando fui trancar o automóvel, sem prestar atenção, mergulhei numa boca-de-lobo e fui bater no fundo, molhando-me todo, da cabeça aos pés. A sorte é que a água do enorme buraco não era outra senão aquela de origem pluvial. Lá no fundo da abertura, ainda deu para notar que havia dois caminhos hidráulicos, isto é, um para o rio, destino de todas as águas que caem dos céus e outra para a continuidade da encanação. Saí todo molhado, não precisa dizer, mas fui ao compromisso que tinha, em que pese a admiração dos circunstantes.
De outra feita, voltava da faculdade para o almoço e trazia de carona um velho amigo, cujo hábito era esse, o de andar sempre comigo. Precisava antes ir ao centro da cidade, já não lembro mais pra quê ou por quê. A verdade é que estacionei o carro e vim andando à rua que desejava. Não vi a abertura de uma tampa do saneamento diante de um prédio e fui ao fundo, literalmente na fossa. Sai dali sem ajuda de ninguém, porque os transeuntes não param para socorrer um penitente sujo até a alma de fezes. Era o que estava acontecendo comigo. A bolsa ficou a salvo por ter permanecido na calçada, mas eu voltei daquele alçapão imundo, com fragmentos de restos humanos presos à minha roupa branca – roupa de médico –, um verdadeiro horror. Não adiantava parar um táxi, pois não se transporta quem está nessa situação, sujo e fecalóide, pelo que o jeito foi seguir a pé, contando os postes até em casa.
Interessante foi a minha passagem pela Universidade Católica, uma forma que tinha de cortar o caminho para a moradia. As pessoas me olhavam e me passavam a impressão de estarem admiradíssimas. Era como se pensassem, diante da figura de um homem bem vestido, todo de branco, com uma pasta 007 à mão, mas repleto de fezes: “Este senhor costuma passar por aqui tão bem e agora está assim, pior que um vagabundo!”. Gente que me conhecia, ligeiramente, virou o rosto e gente que nunca me vira, com nojo de meu estado, deu as costas e fugiu daquele cenário, cujo ator era eu, um suplicante que parecia expiar os pecados todos do mundo. Ora, Deus do céu, se existe perdão para as minhas faltas, creio que o episódio me serviu à absolvição. Se não me assegura as benesses do paraíso, deve me levar à transitoriedade do purgatório.
É desnecessário dizer que quando abri o portão de minha residência a reação foi geral e irrestrita: “Vá tomar banho, imediatamente, no banheiro de detrás e depois venha cá, contar a sua desdita!”. Que horror!
Eis ai a expiação dos pecados, literalmente, numa fossa! Eu te esconjuro cão dos infernos!

(*) Ofereço essas linhas aos companheiros que já passaram por coisa semelhante e tanto quanto eu se emporcalharam nas fossas abertas nas ruas das cidades grandes. Leia e comente no espaço do Blog mesmo ou para pereira@elogica.com.br ou pereira.gj@gmail.com

3 comentários:

  1. Porf. Geraldo, quanto à suas experiências escatológicas, prefiro nem comentar, apesar delas - as fossas - serem tão naturais, afinal vivemos e produzimos. Já as musicais ou, se preferir, as sentimentais também são naturais porque todos nós passamos por isso. Daí ser tão comum no cancioneiro (nosso ou em qualquer lugar do mundo) músicas que falam de rompimentos e dores de corno ou coisas assim. Em todos os ritmos: do bolero ao pagode, do samba ao tango, do boi à ópera. É provavelmente o único ponto comum entre todos os seres humanos: a fossa.
    PS: Lamento pelos seus mergulhos...

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  2. Geraldo, Homem de Deus!
    Que situações incríveis. Parece que vc não prestava atenção por onde andava! Nã0o prestava, porque depois desses dois episódios, acredito que vc tenha mudado!
    Quanto ás canções de "dor de cotovelo", devo dizer que foram muito bem lembradas.
    Muito boa sua narrativa. Aliás, como sempre.
    Parabéns!
    Girley Brazileiro

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  3. Dr. Geraldo. Só mesmo o Senhor para "mexer" com meu imaginário hoje - estou sózinho no CFCH com o prédio em reforma, poeira prá todo lado, telefone que não para de tocar e por aí vai. Meu Deus como é hilário imaginá-lo "embosteado", mala 007 na mão a caminho de casa; o olhar de nojo de algumas pessoas e o de pena de outras. Obrigado, meu eterno Vice-Reitor, por existir. Creia-me seu amigo e obediente leitor. Duprat

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