sábado, 30 de abril de 2011

O olhar de minha mãe.

Há dois anos minha mãe vem doente, num vai e vem de casa para o hospital, do hospital para casa. Parece o que vi no Japão, os velhos bem velhos e os filhos também velhos, sem condições de assumir os encargos. Isso mobiliza toda família, gente que vai e fica, gente que vai e volta. Foi aos poucos perdendo a lucidez, deixando de conhecer os seus, retomando os parentes que já se foram encantados no infinito das coisas. Chama pela mãe que se foi há muitos anos, há cinquenta anos pra trás, se pouco. Ou chama pela irmã que ainda tem viva, que como ela enfrenta dificuldades mil, em cima de uma cama, sem saber bem das coisas.
Eu me lembro dos anos de menino, correndo acima e abaixo, enquanto ela preocupada pedia que descesse da árvore ou que não subisse no muro dos fundos de casa. Muito raramente um castigo, sentado na sala em cadeira da mesa de jantar. Nem me recordo mais como eram essas cadeiras, só sei que sentava aguardando que ela se arrependesse e me mandasse sair dali. Uma vez me prendeu na dispensa, tal a peraltice que fiz e depois se arrependeu tanto que me pediu desculpas, era adulto e barbado. Fiquei com claustrofobia, mas depois venci isso. Tudo se pode vencer na vida, com calma e resignação, dizia meu pai.
A visitei no dia de ontem. Ela estava como sempre deitada na cama, imóvel, sem comunicação alguma com o ambiente. Quando cheguei, falei de logo, dizendo: “Mãe! Como vão as coisas? Está tudo bem?”. Foi quando abriu os olhos e me viu. Fitou-me da forma mais fixa possível, demorando-se com seu olhar. Parecia que se despedia. Quase choro! Fez um esforço grande para falar. Não conseguiu, porque com a traqueotomia que lhe fizeram não consegue mais uma comunicação que seja. Mas, deu para perceber que articulou com os lábios: “Tudo bem!”. É mesmo de seu feitio dizer assim. Nunca foi de se queixar de nada, de absolutamente nada. Pra ela tudo estava bem! Mesmo assim, sem estar.
Lembrei que os meus irmãos expressavam, com frequência, que eu era o queridinho da mamãe. Ora, queridinho, agora, aos 66 anos, quase sete décadas na contabilidade do tempo? De que serve mais? Serve e muito, pensei, com os meus botões, mesmo assim, sem voz mais e de uma forma tão diferente do antes das coisas. De uma maneira, talvez, que só nós dois compreendemos! Só nós dois entendemos o que ficou daquele olhar! Eu jamais esquecerei o olhar de minha mãe ontem à tarde. Não sei se ela realmente me viu por inteiro. Não posso confirmar que tivesse me fitando com a sua vista já tão comprometida, mas não esquecerei a forma como me olhou. Isso nunca!

Vem por ai o dia das mães! Não telefonarei mais para ouvir o que deseja de presente e não terei a mesma resposta de todos os anos: "Um corte de fazenda azul, de puro algodão!". Pra mim essa coisa acabou-se! Hei de comemorar, mas em casa, com a mãe de minhas filhas. A minha mãe já não compreende as coisas. Coitada!



4 comentários:

  1. Geraldo,

    Já senti, como você, o olhar de nossa mãe, sem que saibamos, na realidade, tudo o que se passa com ela.
    É uma dor imensa pelo amor e doação incondicionais aos seus seis filhos.
    Há, em mim, um medo antecipado de ficar sem a minha mãe que sempre me amou e me protegeu com todas as suas garras.
    Estamos, todos, muito , muito tristes e desarvorados, apesar de todas as nossas maturidades.
    Choro e choro demais, em todos os meus momentos.
    Eliana

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  2. Caro Geraldo, parabéns pela narrativa. Comovente. Principalmente para que já não tem mais sua mãezinha nesse plano. Perdi a minha no dia 8 de fevereiro do ano passado. Nunca deixei de sentir todos os dias sua presença. Nas datas comemorativas quando as famílias se reúnem a saudade é imensurável. Mas é uma saudade que se completa com o sentimento do dever cumprido e a eterna lembrança dos bons momentos que passamos juntos quando “um cantava para o outro e do vento escutava a voz”

    Ormuz Simonetti

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  3. Pai, você sempre me ensinou que o homem é o gesto. Ontem vovó demonstrou tudo o que sente com um dos gestos mais significativos: o olhar. Nunca saberemos de fato o que ela pensou, ou se pensou. Mas aquela imagem também nunca mais vai sair da minha cabeça, nem do meu coração.
    Infelizmente a vida nos obriga a conhecer o que é a saudade. E é um dos sentimentos que mais machuca. Sinto muita saudade dela reclamando comigo porque você dirigia muito rápido! E eu dizia: Mas vovó, o que eu posso fazer? Ela respondia na hora: TOME CONTA!
    Saudade daquela vovó.

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  4. Geraldo, Homem de Deus!
    Quanta sensibilidade! Tocante. Para mim que já perdi minha mãe na "flor da idade", aos 77 anos, sua cronica provocou-me um resgate de memoria, do bom tempo que eu podia festejar o dia das mães, como ontem, abraçando e afagando-a carinhosamente. Tenho um amigo no Ceará, um pai que arranjei por lá, com 99 anos e que sempre me diz: "o tempo, meu rapaz, é um patife!" Eu concordo com ele. Aproveitemos, pois.
    Desejo bons momentos à sua mãezinha.
    Girley Brazileiro

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