terça-feira, 8 de outubro de 2013

As fruteiras do terreiro

                               
Sou nascido e criado em sobrado antigo, de estilo cubóide, desses que têm dois alpendres e mais uma varanda, uma sala de visitas e outra de jantar, uma saleta para as refeições e a cozinha do tamanho de alguns dos apartamentos que vi em Paris. Os quartos eram projetados, por certo, para que a família tivesse a prole que desejasse, tal a largueza e o banheiro, nem se fala, com a água quente na banheira permitia o relax de qualquer penitente enfastiado com as coisas da vida. Mas, o melhor de tudo, mesmo, era o quintal! Ali passei as melhores horas de minha infância e os mais interessantes momentos da adolescência. Subi e desci os muros todos da vizinhança, roubei mangas na casa da direita e armei o alçapão de rede para os canários que vicejavam na moradia da esquerda. Fiz da pinheira o meu refúgio, tantas vezes, começando as minhas reflexões juvenis e de uma grande fruteira a medida dos meus desejos, de crescer e de me desenvolver, buscando com uma vara de espanador, na copa distante, a graviola quase impossível, chamada por minha mãe de coração-da-índia. Ali, também, vivi as inquietudes da puberdade, amei e fui amado, nessas iniciações do existir terreno.

Num canto de terra negra, rica em nutrientes orgânicos, uma touceira de bananeiras fornecia, de tempos em tempos, a banana-maçã de sabor inigualável, disputada pela meninada e apreciada pelos adultos pidões. O mangará ia se desfazendo aos poucos, perdendo as cascas e expondo os brotos da fruta, mas eu ajudei, muitas vezes, o evoluir desse processo, antecipando maturidades que nunca chegavam, destruindo, pois, uma palma a mais da roliça fruteira. Foi naquelas proximidades que levantei a minha cabana de madeira, construída com o que sobrara de uma estante, condenada pela desgraçada da polia! De um único vão, não resistiu à intempérie do inverno e ruiu por terra, destruindo sonhos e carregando devaneios. Ali, também, naquelas proximidades da antiga touceira, cavei um buraco grande, que me levaria ao Japão, imaginava, numa fuga qualquer, que precisasse, corrido de mãe e pai, depois das travessuras e das estrepolias de meu dia a dia buliçoso! Do cajueiro e do coqueiro, plantados com as minhas mãos, não só da água me servi, mas da tenra polpa igualmente, saborosas, ambas, a água e a polpa. Caju, todavia, nunca vi nascer e das razões ignoro o mérito! Ainda está por lá o velho coqueiro! Cresceu mais do que eu, como cabe acontecer!


Do galinheiro, também, cuidava, selecionando as melhores penosas e as nomeando reprodutoras do conjunto, promovendo os casamentos com o galo comprado na feira de Santo Amaro. Mas, vez ou outra, decretava-se o abate de uma dessas, da galinha gorda do terreiro, para a mesa do domingo e não havia pedido de clemência que impedisse a ação de uma faca para tanto destinada, que nas mãos da cozinheira degolava a matriz da criação, desfalcada depois. Se o choco chegasse, era deitar os ovos e esperar o tempo regulamentar, pra ver a ninhada piando e seguindo a mãe, mais do que braba, no seu mister de proteger a prole. O risco era o de acontecer o que comigo sucedeu, pegar pixilinga (ou pichilinga?) e sair me coçando feito um louco, aguentando os carões maternos e as desconfianças de minha avó, amedrontada, com receio de contrair, da mesma forma, o diabo do piolho da galinha - Valha-me Deus!. Os mamoeiros dessa avó, plantados com o cuidado obsequioso das amas, como chamava as empregadas, maltratados pela bola de couro do futebol doméstico, feneciam e se os emendava com fita incolor, era pra evitar o mal maior, a queixa apresentada ao pai na hora da janta. Coitada! Não enxergava bem e não via o curativo mal feito, sempre!
Foi por esses meus amores da infância ou por esses meus ardores da adolescência que gostei tanto das crônicas de Osvaldo Martins de Souza, evocando as fruteiras do Espinheiro. Faz bem o cura da Matriz, inserindo no informativo essa liturgia das flores e dos frutos, ritual das árvores e dos homens, num resgate dos enlevos d'alma. Nem só de pão vive o homem, está escrito, mas é desse pão do espírito que vivem os grandes, suficientemente capazes de expressarem os afetos pelo, inteiramente, vegetal. E dos pássaros, também, gosta o escritor, cuidando em alimentar na varanda de casa o beija-flor silente e o sebito de poucas notas. Gosto de tudo isso! Das flores e dos frutos, dos pássaros cantores e daqueles de penas coloridas, mesmo que do canto não possa ensaiar os acordes.

2 comentários:

  1. Geraldo,
    As saudades são realmente grandes companheiras suas, sejam tristes, revividas, carregadas de reminiscências alegres ou tristes!!!
    O seu blog está bem atraente. Estive olhando melhor todos os pormenores. Não se deixe levar pelo horror da palavra ex. Ser ex é muito. Pior é não ter em sua bagagem uma trajetória de vida pautada em grandes cargos. Quisera ser ex. Bem que poderia ter sido. Estaria mais alegre.
    V i também os blogs que você recomenda. Vou segui-los. Um dia chego lá...............

    Abraços, Eliana

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  2. Caríssimo acadêmico Geraldo:
    Felizes, os que tiveram o privilégio de viverem correndo pelos quintais, cheios de fruteiras e aromas doces, de uma infância rica de prazeres, perda irreparável, das crianças de hoje, engaioladas, entre paredes de altos prédios, donde, só veem árvores de concreto. Felizes, os que sentiram o cheiro, da terra molhada de chuva e, saborearam mangas maduras, suculentas, lambendo os beiços e as mãos melecadas do seu sumo.
    E comer galinha à cabidela, aos domingos, família reunida em volta de uma grande mesa, onde risos escancarados, davam-nos sinais de uma vida plena. Ali, não lambia-se os dedos, a educação era exemplar e deveria ser mostrada.
    Sinto saudade dessas coisas e desses cheiros. De quintais tomados de passarinhos, que disputavam os frutos maduros, de cair de árvore e ralar os joelhos na terra, saravam rápido, mais rápido que os corações destroçados do nosso hoje corrido. Como sinto saudade da vida!
    Obrigada, por fazer-me lembrar que já fui criança e, de certa forma, acordá-la dentro de mim. Que nunca deixemos essa criança, habitante do nosso interior, ir-se de nós, pois é ela, que traz-nos de volta à vida, todos os dias, gritando dentro do peito, em algazarra, a grandeza da felicidade da vida. Parabéns pelos lindos textos, aqui escritos.
    Abraço fraterno de Lígia Beltrão

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