sábado, 31 de maio de 2014

Cegueira de Ocasião


Chegou para trabalhar já passava mais de trinta minutos da hora aprazada, a do costume de todos os dias; mas, enfim, chegara. Naquela noite estava, particularmente, atarantado, tinha assistido à aula sobre tétano na Faculdade e aquilo o incomodava terrivelmente: era um hipocondríaco de livro. Soube de sua angústia e esperei pela chegada do chefe, a quem fui receber à porta do Centro de Saúde Gouveia de Barros. Contei o ocorrido e pedi que fizesse uma fisionomia de admiração, indagando-lhe o que havia. Vale a explicação de que a doença (tétano) provoca um riso especial, considerado nos compêndios de propedêutica como um “riso sardônico”. Foi assim: “Mas, o que há com você Valdir? Que riso é este?”. E o grande Valdir, diante de tanto espanto, de tanta surpresa, ficou de pé, levantou os dois braços e gritou em alto e bom som:“Estou com tétano!”. Quase enlouquece com as nossas dúvidas.

Era uma figura comum, igual a todos os outros estudantes de medicina, mas tinha essa peculiaridade, a hipocondria que o levava ao desespero, bastava estudar uma doença nova. Dizem que depois de formado, tendo ganho um bom dinheiro pras bandas do Maranhão, transformou-se em fazendeiro e hoje vive contando as cabeças de gado nos vários currais de que dispõe. Certa vez, porém, estudando em casa de um colega, na companhia de outros companheiros do curso, cismou que tinha engolido um pedaço de vidro da garrafa de coca-cola. A turma, matreira, como era, quebrou o bocal do recipiente e um deles perguntou alto: “Quem foi que quebrou a boca da garrafa de coca-cola?”. Só podia ter sido ele: Valdir. Repetiu, então, o gesto, de pé, com os braços levantados, deu o seu grito de guerra: “Engoli um pedaço de vidro!”. O grupo não fez por menos, levou o colega ao pronto socorro e assistiu de camarote o médico fazer radiografia de todo tipo, contanto que ficasse provado que o bocal não estava em seu estômago.

Os colegas se reuniam sempre para estudar e numa ocasião qualquer, um deles decorou parte do texto, enquanto outro apagava a luz. O nosso protagonista, de imediato, alertou: “Faltou luz!”.Mas o interlocutor que estava lendo o assunto da noite continuou falando e ainda insistia com Valdir: “Cala boca Valdir! Acompanha a leitura!”. O homem– pobre homem! -, gritou a plenos pulmões: “Estou cego!”. Foi uma risadaria geral e a ridicularia tomou conta do lugar. Valdir quase dá em gente com a raiva da hora.

Era assim o nosso colega das noites de trabalho no Centro de Saúde. Adoecia com toda doença que estudava, como se fosse ele mesmo o primeiro cobaia dos males desse mundo de Deus.

 


2 comentários:

  1. Caro Geraldo:
    Esses fatos engraçados, quase pitorescos, nos fazem rir e até fazermos brincadeiras sobre. Mas imagine o sofrimento deste pobre homem, achando-se doente, cego... Coitado!
    Há pessoas que são assim, sensíveis a todo e qualquer acontecimento e se acham infelizes vítimas das "ocorrências" que sequer ocorrem. Ainda bem que ele mudou a vida indo ser fazendeiro. Tomara que multiplique suas cabeças de gado o tanto quanto multiplicava as doenças. Bela crônica! Obrigada por dividi-la com seus leitores. Um abraço!

    Lígia Beltrão - Colunista Divulga Escritor

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  2. Meu caro acadêmico Geraldo,
    Certa feita, ainda jovem, encontrei um amigo na fila do ônibus de Olinda. Ficava ali em frente à casa de discos "Lyra & Queiroz", na Av. Guararapes. Ao tentar uma conversa, ele foi objetivo: "cara, vou embora, tô doente. Dói o corpo todo, estou com febre. Tô lascado!" Botei as costas da mão na sua testa. Estava quente. Depois que tomou o táxi, apressado, veio outro amigo - sabedor da hipocondria de Toinho - e me perguntou com uma cara muito da safada: "que foi que ele te falou?" Depois do relato, ouvi: "foi porque eu disse a ele que tinha a impressão de que ele estava meio pálido". Silvio Costa, o da UFPE.

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