Passava diante do Mercado de São
José, no centro do Recife, quando ouviu aquele grito de um sobrado qualquer:
“Arnaldo!”. Parou admirado, e olhou pra cima. Viu Maria de Camocim debruçada na
janela. Fez sinal que descesse e ficou aguardando a vinda de uma das musas de
sua adolescência. Mulher bonita e bem feita, de seios fartos e ancas largas;
figura que não aceitava a condição de empregada doméstica e se passava na rua
como costureira da casa dos Macieiras. Menina em Camocim de São Felix,
habituada a brincar pras bandas do convento, engraçou-se por lá de um primo,
Felisberto de prenome. Foi com ele que viajou à Caruaru, levando outro primo,
criança na idade, como acompanhante do casal, segurando a vela, se dizia.
Enganaram Jacinto e se danaram para uma pensão na rua do comércio. Ali Maria
deixou de ser moça, transformou-se em mulher. Selou o seu destino, disseram
depois.
Desceu e abraçou Arnaldo, deu um
cheiro no cangote do quase menino ainda e começou a perguntar por todos. Como
iam os parentes, os aderentes e os agregados? Todos ou quase todos muito bem!
Não esquecia das companheiras de seu tempo, empregadas como ela e por isso
mesmo suas colegas. Como está Marinete? A mulher das coxas mais grossas que já vira,
com as quais sonhava o avô de Arnaldo, seu Borromeu, sempre interessado em lhe
fazer um agrado a mais. Ou como estava Virginia dos Palmares, mulher nascida e
criada nos canaviais e para sempre perdida na bagaceira do engenho? E Gelda? E
Ivonete, com os seus amores do mar, apaixonada por um fuzileiro fictício, que
lhe fazia o imaginário arder em fantasias? Finalmente, onde andava Cícera, a
cozinheira gorda, imensa, deixando sair pelo ventre fragmentos adiposos de sua
largueza?
De ninguém sabia mais! A última das
suplicantes dos anos de puberdade fora Odete, negra na cor e sapeca nos gestos.
Agitada e barulhenta, tinha sempre um agrado ou um gesto com o qual cativar. E
cativava mesmo! Vez ou outra ameaçava o garoto: “Se continuar a me fazer
carinho, chamo seu pai!”. Mentira! Nunca chamara! Nem chamaria! Gostava do
chamego. E quem não gosta? Só esqueceu de perguntar por Maria Baixinha, para
quem o adolescente em flor, ouvindo o correr sonoro e melódico do chuveiro, fez
um verso, parodiando Bandeira: “Maria Baixinha/Era tão pequenininha/Que cabia
todinha/Nuinha/Nuinha/No buraco da fechadura do banheiro...”. E era isso mesmo!
Sequer conhecera a sua xará, justificou. Foi quando chamou Arnaldo para subir.
Vou lhe dar um cheiro gostoso e deixar você me fazer um carinho matreiro. Não,
não dava mais, explicou o rapaz! Ia adiante, pensava em comprar um
canário-da-terra na saída do mercado que dá para a Basílica. Já estava
atrasado, o tempo do cheiro e do afago passara, ficara nas brumas do passado.
Era ela quem permitia que o então
menino visse as suas intimidades. O dinheiro que o pai deixara para o corte do
cabelo servia para ter a visão dos seios e os recursos com os quais deveria
pagar as aulas de piano cobririam os custos da visão paradisíaca do triângulo
das bermudas, escuro e fundo, como cabe ser a esses precipícios úmidos. O
menino tinha boa conversa e nunca hesitou em acenar com um lugar de bom
ordenado no rebolado da Festa da Mocidade: “Maria! Você não é mulher para ser
empregada doméstica. Você merece muito mais; merece o rebolado das vedetes,
cantando assim: ‘E o boi pra onde é que ele foi?/E o boi!/Vocês só falam e
ninguém quer trabalhar!”. Prometia que o pai poderia lhe conseguir isso,
encaixá-la no teatro. Ela não sabia que o pai de Arnaldo escrevia todos os dias
no jornal e nunca deixou de meter o pau na imoralidade das noites no Parque 13
de maio. O Dr. Remígio nunca poderia saber dessas promessas vãs, interesseiras.
E ela, indagou o seu interlocutor de
ocasião, finalizando o diálogo: como estava e como passava? Estava casada com
um estivador, um homem forte e bruto, capaz de lhe esmurrar, como fizera
algumas vezes, se lhe visse conversando com um homem. Ao que perguntou Arnaldo,
dando uma de “João sem braço”, mesmo com ele; com ele que fora seu companheiro
de convívios e de convivências nas dependências de casa há tantos anos? Sim!
Era doente de ciúmes! Mataria o primeiro que visse consigo. Valei-me Senhor,
disse Arnaldo, saindo de mansinho, com a promessa silente de nunca mais voltar.
E nunca mais se cruzaram nos horizontes da vida. O rapaz vive pra lá, tem os
cabelos da cor da prata e o corpo vergando à força dos anos e dela – coitada! –
ninguém sabe, porque ninguém viu!
Maria
de Camocim? Foi a mais bonita. A mais traquina e a mais travessa.
Caro Geraldo:
ResponderExcluirLendo sua crônica, fico a pensar como os rapazes de um tempo atrás, aproveitavam bem a vida. Lembranças, as melhores. E as moças, despudoradas e ao mesmo tempo, tão sérias...
Acho que o coitado do Arnaldo, até hoje, deve imaginar o tamanho dos músculos do estivador, que no fim devia ser um bom homem, visto que cuidava de Maria de Camocim, pelo jeito com ciúmes e tudo que o amor tem direito. Afinal, "ela foi a mais bonita, traquina e travessa"... Vai ver, Arnaldo até hoje sonha com ela... Coitado! Um abraço.
Lígia Beltrão - Divulga Escritor