terça-feira, 13 de maio de 2014

Maria de Camocim


Passava diante do Mercado de São José, no centro do Recife, quando ouviu aquele grito de um sobrado qualquer: “Arnaldo!”. Parou admirado, e olhou pra cima. Viu Maria de Camocim debruçada na janela. Fez sinal que descesse e ficou aguardando a vinda de uma das musas de sua adolescência. Mulher bonita e bem feita, de seios fartos e ancas largas; figura que não aceitava a condição de empregada doméstica e se passava na rua como costureira da casa dos Macieiras. Menina em Camocim de São Felix, habituada a brincar pras bandas do convento, engraçou-se por lá de um primo, Felisberto de prenome. Foi com ele que viajou à Caruaru, levando outro primo, criança na idade, como acompanhante do casal, segurando a vela, se dizia. Enganaram Jacinto e se danaram para uma pensão na rua do comércio. Ali Maria deixou de ser moça, transformou-se em mulher. Selou o seu destino, disseram depois.
Desceu e abraçou Arnaldo, deu um cheiro no cangote do quase menino ainda e começou a perguntar por todos. Como iam os parentes, os aderentes e os agregados? Todos ou quase todos muito bem! Não esquecia das companheiras de seu tempo, empregadas como ela e por isso mesmo suas colegas. Como está Marinete? A mulher das coxas mais grossas que já vira, com as quais sonhava o avô de Arnaldo, seu Borromeu, sempre interessado em lhe fazer um agrado a mais. Ou como estava Virginia dos Palmares, mulher nascida e criada nos canaviais e para sempre perdida na bagaceira do engenho? E Gelda? E Ivonete, com os seus amores do mar, apaixonada por um fuzileiro fictício, que lhe fazia o imaginário arder em fantasias? Finalmente, onde andava Cícera, a cozinheira gorda, imensa, deixando sair pelo ventre fragmentos adiposos de sua largueza?
De ninguém sabia mais! A última das suplicantes dos anos de puberdade fora Odete, negra na cor e sapeca nos gestos. Agitada e barulhenta, tinha sempre um agrado ou um gesto com o qual cativar. E cativava mesmo! Vez ou outra ameaçava o garoto: “Se continuar a me fazer carinho, chamo seu pai!”. Mentira! Nunca chamara! Nem chamaria! Gostava do chamego. E quem não gosta? Só esqueceu de perguntar por Maria Baixinha, para quem o adolescente em flor, ouvindo o correr sonoro e melódico do chuveiro, fez um verso, parodiando Bandeira: “Maria Baixinha/Era tão pequenininha/Que cabia todinha/Nuinha/Nuinha/No buraco da fechadura do banheiro...”. E era isso mesmo! Sequer conhecera a sua xará, justificou. Foi quando chamou Arnaldo para subir. Vou lhe dar um cheiro gostoso e deixar você me fazer um carinho matreiro. Não, não dava mais, explicou o rapaz! Ia adiante, pensava em comprar um canário-da-terra na saída do mercado que dá para a Basílica. Já estava atrasado, o tempo do cheiro e do afago passara, ficara nas brumas do passado.
Era ela quem permitia que o então menino visse as suas intimidades. O dinheiro que o pai deixara para o corte do cabelo servia para ter a visão dos seios e os recursos com os quais deveria pagar as aulas de piano cobririam os custos da visão paradisíaca do triângulo das bermudas, escuro e fundo, como cabe ser a esses precipícios úmidos. O menino tinha boa conversa e nunca hesitou em acenar com um lugar de bom ordenado no rebolado da Festa da Mocidade: “Maria! Você não é mulher para ser empregada doméstica. Você merece muito mais; merece o rebolado das vedetes, cantando assim: ‘E o boi pra onde é que ele foi?/E o boi!/Vocês só falam e ninguém quer trabalhar!”. Prometia que o pai poderia lhe conseguir isso, encaixá-la no teatro. Ela não sabia que o pai de Arnaldo escrevia todos os dias no jornal e nunca deixou de meter o pau na imoralidade das noites no Parque 13 de maio. O Dr. Remígio nunca poderia saber dessas promessas vãs, interesseiras.
E ela, indagou o seu interlocutor de ocasião, finalizando o diálogo: como estava e como passava? Estava casada com um estivador, um homem forte e bruto, capaz de lhe esmurrar, como fizera algumas vezes, se lhe visse conversando com um homem. Ao que perguntou Arnaldo, dando uma de “João sem braço”, mesmo com ele; com ele que fora seu companheiro de convívios e de convivências nas dependências de casa há tantos anos? Sim! Era doente de ciúmes! Mataria o primeiro que visse consigo. Valei-me Senhor, disse Arnaldo, saindo de mansinho, com a promessa silente de nunca mais voltar. E nunca mais se cruzaram nos horizontes da vida. O rapaz vive pra lá, tem os cabelos da cor da prata e o corpo vergando à força dos anos e dela – coitada! – ninguém sabe, porque ninguém viu!
   Maria de Camocim? Foi a mais bonita. A mais traquina e a mais travessa.

Um comentário:

  1. Caro Geraldo:
    Lendo sua crônica, fico a pensar como os rapazes de um tempo atrás, aproveitavam bem a vida. Lembranças, as melhores. E as moças, despudoradas e ao mesmo tempo, tão sérias...
    Acho que o coitado do Arnaldo, até hoje, deve imaginar o tamanho dos músculos do estivador, que no fim devia ser um bom homem, visto que cuidava de Maria de Camocim, pelo jeito com ciúmes e tudo que o amor tem direito. Afinal, "ela foi a mais bonita, traquina e travessa"... Vai ver, Arnaldo até hoje sonha com ela... Coitado! Um abraço.

    Lígia Beltrão - Divulga Escritor

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